Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Entrou no gabinete papal
depois do jantar ligeiro. Cherne com feijão verde, cenoura raspada, tudo regado
com um pouco de azeite Riserva D’Oro. A última vez que ali estivera era um mero
cardeal com um perdão da má palavra, mas o que é um príncipe ao lado de um imperador?
A sensação, agora, era completamente diferente. Passou a mão pela portentosa
mesa. Ali assinaria os futuros decretos da sua igreja. Via-a magnificente,
condizente com as vestes que envergava, assente em pilares muito sólidos,
escudada nas suas mãos fortes e sábias. As rédeas eram dele. Sentou-se na
confortável cadeira e saboreou o momento. Lembrou Wojtyla e as décadas em que,
ele próprio, o observava sentar-se, pesadamente, naquela mesma cadeira, e
decidir dos destinos da Igreja. Ali não era possível esquecer que fora
escolhido para o ofício de uma vida até à morte. Sodano e Somalo observavam-no.
Assim tomava posse um novo Papa.
Nesse momento entrou no gabinete um
outro elemento. Trajava batina preta e ajoelhou-se, com dificuldade, a saudar
Bento com um beijo na mão que ainda não tinha anel. Já muitos haviam beijado a
mão dele neste dia, mas nenhum com esta franqueza. Era velho e até a respirar
lhe custava. Não me recordo de o ter visto alguma vez, insinuou Ratzinger,
sorrindo. Nada o indisporia neste dia. Peço desculpa pela intromissão, Santo
Padre. O meu nome é Ambrosiano. Fui confessor do nosso amado Papa João Paulo
depois da morte do padre Michalski, explicou-se arfante. Mandam os cânones que
Sua Santidade se confesse esta noite, por ser a primeira. Para que inicie um
pontificado livre de pecados. Desfez-se em desculpas. Não quero dizer que os
tenha, Santidade, por favor não me leve a mal. Depois poderá escolher o
confessor que lhe aprouver. A Companhia de Jesus e as regras rígidas. O cardeal
Dezza também confessou o papa Wojtyla?, perguntou Ratzinger. Só nos primeiros
anos, Santo Padre. Mas confessou o papa Montini durante todo o pontificado e o
papa Luciani. Depois, o papa Wojtyla nomeou-o superior-geral da Companhia, se
bem se lembra.
Claro, claro. Um grande servo da
Igreja, disse contemplando o passado. E agora o padre Ambrosiano quer-me
confessar. São os cânones, Santo Padre, repetiu o clérigo. E os cânones são
sempre para respeitar. E comigo sê-lo-ão sempre. Cuidarei para que isso
aconteça, afirmou Ratzinger, brandindo o dedo como se estivesse a proferir um
discurso. O padre aproveitou para retirar um colar que trazia ao pescoço.
Encontrava-se presa nele uma chave que utilizou para destrancar uma das gavetas
da secretária. Dentro havia uma capa de couro com fechadura e um envelope com
as armas pontifícias do antecessor. Retirou tudo da gaveta e colocou em cima da
mesa, em frente a Bento. O papa João Paulo deu-me instruções especificas para
que Sua Santidade leia, com atenção, o conteúdo deste dossiê ainda hoje. Todas
as informações estão contidas neste envelope que deixou, especificamente, para
si, explicou, entregando-lhe o envelope lacrado. Mais ninguém pode ler.
Bento fitou o padre e os cardeais e
o envelope. Respeite-se a sua vontade, proferiu por fim. Olhou os dois homens
como a pedir que se retirassem e estes cumpriram o desejo sem delongas. Vontade
de papa era ordem. Deixá-lo-ei ler à vontade, Santo Padre, disse o padre
jesuíta recuando. Quando estiver pronto é só chamar. Bento fechou os olhos e
inclinou-se para trás. Milhares de pensamentos afluíram-lhe à mente. Iria
compartir um segredo partilhado apenas por papas. Que extraordinária forma de
começar o seu mandato. Alguns minutos depois quebrou o lacre do envelope que o
polaco deixara. O papel cheirava a mofo.
Prezado Eleito
Congratulo-me com
a tua eleição. A história prossegue o seu caminho glorioso, dois mil anos
depois. Acabas de ocupar o cargo mais exigente do planeta. Prepara-te, pois
será um caminho agreste e ingrato e, o pior de tudo, começa já. Dentro da capa
que te foi apresentada encontrarás informações lidas por muito poucos.
Informações cruciais acerca da nossa Igreja. Não deves... não podes deixar de
as ler e instruir os teus secretários a apresentá-las ao teu sucessor na noite
da próxima eleição. O ritual começou com Leão X e conheceu novos
desenvolvimentos com Pio IX e João XXIII. Jamais deixou de ser cumprido, NEM
PODE DEIXAR DE O SER. Infelizmente, em breve compreenderás a razão. Deixo-te
nas boas graças do Bom Deus. Que te ilumine e te dê forças para carregares o
enorme fardo que subsistirá no final destas páginas. Da tua força depende o
futuro da nossa Igreja. João Paulo II P.P. 29 de Outubro de 1978.
Uma curiosidade mórbida conquistou
Bento após a leitura da missiva que Lolek escrevera há quase vinte e sete anos.
Que informações tão devastadoras estariam dentro do dossiê? O envelope guardava
a pequena chave dourada que o abria. Tratou de o destrancar sem demoras e
dedicou-se, afincadamente, à leitura das cerca de 100 páginas. Não havia
imaginado uma primeira noite assim, a seguir instruções do antecessor. E cedo
se notou, pelo esgar dos olhos mortiços, que não estava preparado para o que
lia. Algumas passagens foram relidas para se certificar de que as lera
correctamente, noutras acelerou o mais possível como que a fugir de algo
inoportuno ou inconveniente. Terminou a leitura depois da meia-noite. Estafado,
voltou a trancar o dossiê com a chave e a guardá-lo na gaveta. Gotas de suor
colavam-se à testa. As mãos tremiam. Deixou cair a cabeça na mesa e quedou
assim até ganhar algum controlo sobre o corpo. Aos poucos acalmou. Quando se
levantou, a custo, parecia mais velho e acabado. Deus nos valha, desabafou,
fazendo o sinal da cruz.
Nesse momento, o padre Ambrosiano
reentrou no gabinete papal. Parecia-lhe diferente. Uma dor que lhe vergastava a
alma, a mesma que o castigava a ele. Um silêncio contido de algo demasiado
grande para calar. O jesuíta sabia. Desta vez o jesuíta não se abaixou para
beijar a mão do papa. Ratzinger acercou-se, humildemente, dele e deixou-se cair
aos seus pés. Soltou um lamento entrecortado pelas lágrimas que caíam em
torrente. Perdoe-me, padre. Eu pequei, implorou o papa, fechando os olhos. Ambrosiano
passou a mão bondosa pelo cabelo do papa com uma carícia. Eu sei, meu filho...
Eu sei». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN
978-972-004-325-2.
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