domingo, 6 de dezembro de 2015

Morreste-me. José Luís Peixoto. «Os teus gestos, a forma das tuas mãos a segurar o volante; a forma das minhas mãos, o volante, os meus gestos. As coisas e eu mexem-se, deslocam-se todas. Vou. Parto para o que sobra de ti e tudo são resquícios do que foste»

Cortesia de wikipedia

«(…) Quero que saibas, cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra, luz fina a recortar-me de mim, ténue, sombra apenas. Não te posso esconder, depois de ti, ainda há tudo isto, toda esta sombra e o silêncio e a luz fina que agora és. Pai. Eu, a minha mãe. A madrugada. Desinteressado do nosso cansaço, o sol levantou-se no céu. E parou. O sol parou. Entre mim e ela deixou de haver tempo. Parou o tempo. Nos meus olhos, a tua mulher sem ti, a tua viúva. Nos seus olhos, eu. E sobre nós, em nós, tu, a tua presença, a tua ausência. E separados por nada, os olhares maciços, um dentro do outro e esse dentro do primeiro; os dois olhares na unidade fixa de um único. A tua viúva. Deu-me a chave da carrinha, deu-me as chaves de casa, disse-me vai devagar, vai com cuidado, vai devagar. Os olhares não se separaram. Os corpos distanciaram-se. E ficou parada à porta da casa da minha irmã. Cada vez mais longe, cada vez mais e mais, mais, cada vez mais longe. O seu vulto negro, quase a sua sombra. E sobre o cansaço, só o luto, só a força triste adulta do seu olhar. Os corpos distanciaram-se, mas a face da tua memória, o mundo, acorrentou-nos definitivamente. Longe, na nossa pele, nasceu uma brisa. O sol levantou-se no céu. Agora, sento-me no teu lugar de condutor. Lembro o que me ensinaste, o que aprendi. Seguíamos caminhos de areia que levavam, que traziam os homens das herdades e dos montes em carroças e tractores e, ao chegarmos ao campo da bola, paravas a carrinha, trocávamos de lugar, cruzávamo-nos no pára-brisas; liga o motor, e pisava a embraiagem e rodava a chave e ligava o motor. Na aragem crepuscular dos dias longos de Verão, íamos devagar. Ensinavas-me. Entre o riso simpático miúdo dos pardais que se levantavam a voar dos campos ralos de palha e o sono pesado que os sobreiros abatiam sobre a terra, os teus ditos de professor a antecederem os meus movimentos. Na aragem, íamos devagar. Depois, se fazia alguma coisa mal, dizias que eu era um cabeça no ar e fingias que ralhavas; eu ouvia calado, orgulhoso por me achares capaz, distraído mas capaz. Ensinavas-me. Grave, porque grave era a lição, apontavas-me cada passo com o olhar e dizias mete a primeira, segura bem o volante, vai largando a embraiagem. Os teus gestos, a forma das tuas mãos a segurar o volante; a forma das minhas mãos, o volante, os meus gestos. As coisas e eu mexem-se, deslocam-se todas. Vou. Parto para o que sobra de ti e tudo são resquícios do que foste. Parto de ti, viajo nos teus caminhos, corro e perco-me e desencontro-me no enredo de ti, nasço, morro, parto de ti, viajo no escuro que deixaste e chego, chego finalmente a ti. Pai. Ao lado desta manhã, a outra vez. A primeira noite que não viste. A noite sem lua, só noite negra a encher-nos todos. Sólida, a noite grande enorme, a noite sem mais que o seu e o nosso negro. Espessa, a noite a travar o carro. E a chuva grossa, e cortinas de chuva, e correntes de água limpa nos vidros foscos do carro. O negro líquido da noite a mover-se, a acordar em figuras redondas de água. E a chuva, pesada, o peso inteiro da água ou do céu a vergar as árvores e as costas, a afastar a gente e tudo da nossa passagem. A chuva, lagos e cascatas, um oceano, o mar, chuva longa e perene. A outra vez, a outra viagem sem esperança. Inocente indefeso adormecido sereno, tu. As ideias, as tuas memórias cobertas por madeira e verniz e um crucifixo. O caixão fechado. A chuva, a noite. A minha mãe e a minha irmã choravam, diziam palavras e dor, choravam, diziam palavras mais palavras. E o trabalho das tuas mãos grossas ásperas, suaves ternas para mim, repousava, repousavam uma sobre a outra. O homem da agência funerária conduzia sem nos ver e falava como se o pudéssemos ouvir. E o teu corpo, lavado com um pano húmido e vestido sem vontade, tão direito. Só chuva e noite, pai. Atrás de nós, o passado a crescer quilómetro a quilómetro. E tu, já sem passado, perdido nele e a partir dele a seres dor e palavras, chuva e noite. Tu impossivelmente morto. Pai. Apenas chuva. Apenas noite». In José Luís Peixoto, Morreste-me, Temas e Debates, 2000/2001, ISBN 972-759-370-4.

Cortesia de TDebates/JDACT