«(…)
Quero que saibas, cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra, luz fina a
recortar-me de mim, ténue, sombra apenas. Não te posso esconder, depois de ti,
ainda há tudo isto, toda esta sombra e o silêncio e a luz fina que agora és. Pai.
Eu, a minha mãe. A madrugada. Desinteressado do nosso cansaço, o sol
levantou-se no céu. E parou. O sol parou. Entre mim e ela deixou de haver
tempo. Parou o tempo. Nos meus olhos, a tua mulher sem ti, a tua viúva. Nos
seus olhos, eu. E sobre nós, em nós, tu, a tua presença, a tua ausência. E
separados por nada, os olhares maciços, um dentro do outro e esse dentro do
primeiro; os dois olhares na unidade fixa de um único. A tua viúva. Deu-me a
chave da carrinha, deu-me as chaves de casa, disse-me vai devagar, vai com
cuidado, vai devagar. Os olhares não se separaram. Os corpos distanciaram-se. E
ficou parada à porta da casa da minha irmã. Cada vez mais longe, cada vez mais
e mais, mais, cada vez mais longe. O seu vulto negro, quase a sua sombra. E
sobre o cansaço, só o luto, só a força triste adulta do seu olhar. Os corpos
distanciaram-se, mas a face da tua memória, o mundo, acorrentou-nos definitivamente.
Longe, na nossa pele, nasceu uma brisa. O sol levantou-se no céu. Agora,
sento-me no teu lugar de condutor. Lembro o que me ensinaste, o que aprendi.
Seguíamos caminhos de areia que levavam, que traziam os homens das herdades e
dos montes em carroças e tractores e, ao chegarmos ao campo da bola, paravas a
carrinha, trocávamos de lugar, cruzávamo-nos no pára-brisas; liga o motor, e
pisava a embraiagem e rodava a chave e ligava o motor. Na aragem crepuscular
dos dias longos de Verão, íamos devagar. Ensinavas-me. Entre o riso simpático
miúdo dos pardais que se levantavam a voar dos campos ralos de palha e o sono
pesado que os sobreiros abatiam sobre a terra, os teus ditos de professor a
antecederem os meus movimentos. Na aragem, íamos devagar. Depois, se fazia
alguma coisa mal, dizias que eu era um cabeça no ar e fingias que ralhavas; eu
ouvia calado, orgulhoso por me achares capaz, distraído mas capaz.
Ensinavas-me. Grave, porque grave era a lição, apontavas-me cada passo com o
olhar e dizias mete a primeira, segura bem o volante, vai largando a
embraiagem. Os teus gestos, a forma das tuas mãos a segurar o volante; a forma
das minhas mãos, o volante, os meus gestos. As coisas e eu mexem-se,
deslocam-se todas. Vou. Parto para o que sobra de ti e tudo são resquícios do
que foste. Parto de ti, viajo nos teus caminhos, corro e perco-me e
desencontro-me no enredo de ti, nasço, morro, parto de ti, viajo no escuro que
deixaste e chego, chego finalmente a ti. Pai. Ao lado desta manhã, a outra vez.
A primeira noite que não viste. A noite sem lua, só noite negra a encher-nos
todos. Sólida, a noite grande enorme, a noite sem mais que o seu e o nosso
negro. Espessa, a noite a travar o carro. E a chuva grossa, e cortinas de
chuva, e correntes de água limpa nos vidros foscos do carro. O negro líquido da
noite a mover-se, a acordar em figuras redondas de água. E a chuva, pesada, o
peso inteiro da água ou do céu a vergar as árvores e as costas, a afastar a
gente e tudo da nossa passagem. A chuva, lagos e cascatas, um oceano, o mar,
chuva longa e perene. A outra vez, a outra viagem sem esperança. Inocente
indefeso adormecido sereno, tu. As ideias, as tuas memórias cobertas por
madeira e verniz e um crucifixo. O caixão fechado. A chuva, a noite. A minha
mãe e a minha irmã choravam, diziam palavras e dor, choravam, diziam palavras
mais palavras. E o trabalho das tuas mãos grossas ásperas, suaves ternas para
mim, repousava, repousavam uma sobre a outra. O homem da agência funerária
conduzia sem nos ver e falava como se o pudéssemos ouvir. E o teu corpo, lavado
com um pano húmido e vestido sem vontade, tão direito. Só chuva e noite, pai.
Atrás de nós, o passado a crescer quilómetro a quilómetro. E tu, já sem
passado, perdido nele e a partir dele a seres dor e palavras, chuva e noite. Tu
impossivelmente morto. Pai. Apenas chuva. Apenas noite». In José Luís Peixoto,
Morreste-me, Temas e Debates, 2000/2001, ISBN 972-759-370-4.
Cortesia
de TDebates/JDACT