«(…)
A minha mãe, mãe verdadeira de todos nós, olhava-nos e sorria assim e sorria
por isso. Felizes. Distantes da chuva grossa deste Inverno negro, distantes do
teu corpo gelado. Lívido na luz trémula das velas, arranjadinho, penteado com
água, vestido com o fato que usaste no casamento da minha irmã: o teu corpo
gelado. E a Capela de São Pedro cheia de gente a abraçar-me, cheia de gente a
dizer-me coitadinho e os meus pêsames e sinto muito, cheia de gente a
procurar-me e a querer agarrar-me e prender--me e dizer coitadinho e os meus
pêsames e sinto muito. Pai. Perder-te. E revivi o silêncio insepulto dos teus
lábios mortos. E as sombras de nós, como se apenas esperassem estes pensamentos
para se perderem, misturaram-se no preto. O pó das horas sem gente a vivê-las
cobriu os móveis e o espaço fechado entre eles. As paredes voltaram a separar o
Inverno nocturno, permanente da casa e o ciclo alternado dos dias e do mundo,
alheio a nós, para lá de nós. Comigo, a casa estava mais vazia. O frio entrava
e, dentro de mim, solidificava. As várias sombras da sombra de mim, imóveis,
passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram
igualmente negros e frios. E abri a janela. Muito longe do luto do meu sentir,
do meu ser, ser mesmo, o sol-pôr a estender-se na aurora breve solene da nossa
casa fechada, pai. E pensei não poderiam os homens morrer como morrem os dias? Assim,
com pássaros a cantar sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo e o
fresco suave fresco, a brisa leve a tremer as folhas pequenas das árvores, o
mundo inerte ou a mover-se calmo e o silêncio a crescer natural, natural, o
silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno. Pai. A tarde dissolve-se
sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos.
Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece
devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora,
nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e,
seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso
me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai.
Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que
finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é
agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o
dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por
seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui
no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das
tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O
entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva.
Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que
nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se
adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais
abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar.
Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca
esquecerei o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce
uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder,
ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz, fina a
recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai». In
José Luís Peixoto, Morreste-me, Temas e Debates, 2000/2001, ISBN 972-759-370-4.
Cortesia
de TDebates/JDACT