«(…) A bagagem
que estava empilhada no carrinho era extravagante, de um couro verde muito escuro,
com uma textura áspera e rugosa e incluía peças de todos os tamanhos e feitios
imagináveis, desde pequenas maletas cúbicas, passando por gigantescos baús de
porão, guarnecidos com protecções brilhantes de metal, até uma caixa de chapéus
do tamanho de um tambor de bateria. Tinha um aspecto antiquado ou era vintage, ou ume copia rigorosa, evocava
o tom glamoroso de um transatlântico do início do século XX, daqueles que
apareciam nos antigos jornais de actualidades e serem baptizados com garrafas de
champanhe no meio de tempestades silenciosas de papelinhos. Um sedan com vidros fumados esperava junto
ao passeio. Todas as peças da bagagem exibiam uma etiqueta com uma única
palavra, em letras maiores ou menores: Weymarshe. Edward decidiu quebrar o
silêncio. Como é?, perguntou. O brinco, quero eu dizer. A mulher olhou para ele
como se um shih tzu que fosse a
passar tivesse subitamente falado. De prata. O fecho deve ter-se aberto. Fez
uma pausa e depois acrescentou desanimada: É um Yardsdale. O homem mais velho cansou-se
de esperar e ajoelhou-se também, não sem antes ter puxado para cima as pernas das
calças, com o ar de alguém que e forçado a fazer uma coisa que está muito abaixo
da sua dignidade. Em breve juntou-se lhes o motorista, um homem pálido, com um queixo
indefinido, praticamente uma linha direita que ia do lábio inferior ao colarinho,
que olhou atentamente para baixo da limusina. O porteiro acabou de meter as
malas no porta-bagagem. Edward teve a sensação de que ambos partilhavam o
desagrado do homem mais velho pela mulher do chapéu. Estavam aliados contra ela
Edward sentiu qualquer
coisa esmagar-se sob o seu tacão direito. Retirou o pé e surgiram os restos
calcados do brinco. A avaliar pelo gémeo sobrevivente, deveria ter tido a forma
de uma delicada ampulheta de prata, mas agora não passava de um bocado de
pechisbeque amassado, impossível de distinguir de um invólucro de pastilha
elástica. Era bem feito, por o ter arrastado para aquilo, pensou ele. Levantou-se.
Desculpe, disse, sem se esforçar por parecer consternado. Não o vi. Edward
estendeu a mão. A mulher também se levantou, com o rosto vermelho por ter
estado tanto tempo acocorada. Ele esperava uma explosão, mas em vez disso estampou-se
no rosto dela a expressão de quem recebia de prenda de Natal exactamente o que
desejara. Lançou-lhe um sorriso de derreter o coração e tirou-lhe, desvanecida,
o brinco da mão. Nesse momento ele reparou num pormenor que lhe escapara: uma
gota de sangue, grossa e redonda, pendia trémula do lóbulo delicado da sua
orelha. Mesmo por baixo, no ombro do vestido, via-se mais um pingo de sangue.
Olha, Peter! Ele deu completamente cabo do brinco! Voltou-se alegremente para o
marido, que sacudia das mangas uma poeira invisível. Bem, pelo menos podias
fingir que estavas interessado. Ele olhou para os destroços que ela segurava na
mão. É verdade, muito lindo. E assim retomaram as aparências. A mulher revirou
os olhos para Edward, com uma expressão conspirativa, depois dirigiu-se para o
carro. O motorista de queixo inexistente abriu a porta e ela entrou para o
banco de trás. Bem, de qualquer modo, muito obrigada, disse a Edward, das profundidades
do sedan. O motorista lançou a Edward
um olhar de advertência, como para dizer: e já
está, não vais levar mais nada, e a limusina afastou-se na curva, com um
chiar de pneus curto e agudo. Seriam gente famosa? Deveria tê-los reconhecido?
Um pequeno triângulo de cor creme do vestido da mulher ficara preso na porta quando
esta se fechou e abanava freneticamente ao vento. Edward apontou e tentou gritar-lhes
qualquer coisa, depois desistiu. De que é que servia? Quando o carro fez a
curva para Park Avenue, sempre a acelerar, Edward observou-o a afastar-se, com
uma vaga sensação de alívio. No entanto, sentia igualmente uma ponta de desilusão
tardia, o mesmo que a Alice poderia ter sentido se tivesse tomado a decisão sensata
e prudente, mas muito chata, de não seguir o Coelho Branco pela toca dentro.
Abanou a cabeça
e voltou a concentrar-se na situação presente. Estava oficialmente de férias,
duas semanas livres e sem nada que fazer, antes de ocupar o seu lugar no escritório
de Londres, mas tinha ainda aceitado visitar um cliente antes de partir. Era um
casal colossalmente rico, e Edward tinha contribuído modestamente para os
tornar ainda mais ricos, através de um negócio altamente elaborado que ele
tinha orquestrado e que envolvia investimentos no mercado da prata, uma cadeia
de quintas onde eram apuradas raças de cavalos e uma enorme e enormemente subavaliada
companhia de seguros de aviação. A organização da operação tinha-lhe ocupado
várias semanas, com uma investigação aborrecidíssima e esgotante, mas quando
por fim colocou todos os elementos em acção, funcionara tudo na perfeição, como
a dança das cadeiras, mas ao contrário; quando a música parou, todas as outras
pessoas ficaram sentadas em posições desconfortáveis, enquanto ele ficava de
pé, livre para se retirar, com uma quantidade impressionante de dinheiro Ele
nem sequer conhecia os clientes, não sabia que eles sabiam quem ele era, mas, segundo
parecia, o patrão tinha-lhes dado o seu nome, provavelmente tinham-lhe perguntado
quem era o jovem promissor que lhes dera a ganhar todo aquele dinheiro e era
por isso que tinham solicitado a sua presença naquele dia. Tinha recebido
instruções para os manter satisfeitos, custasse o que custasse, Na altura,
protestara, para que é que servia começar uma relação nova com um cliente, no
momento preciso em que se preparava para partir?, mas agora verificava com um
certo mal-estar que se encontrava num estado de quase ansiedade». In
Lev Grossman, O Códice Secreto, 2004, tradução de Maria Colares, Editorial
Presença, 2005, Edição Sicidea, colecção Enigmas da História, 2006, DLegal
B-54693-2006.
Cortesia de
Sicidea/JDACT