«E mesmo em caças, artes que requerem silêncios, El-Rei leva músicos
tal é o ‘prazimento’... Aliás, eram
frequentes, no tempo da sua melhor disposição, os passeios ao campo e aos rios,
com acompanhamento musical. Muito característicos, em época de folguedo e
divertimento, os passeios em rio, que no reino há um maior do que todos e que é
o Tejo, e até soía estar em suas margens grandes lezírias que o rio, bruto, leva
por vezes com ele e ocupa.
El-Rei ia pelo Tejo, primeiro pelas margens, em bons locais de
embarcação, onde recebia singular recebimento de batéis e outros muitos navios,
albetoças, barcas e todos toldados de
grande perfeição. Uma vez, essa vez guardava em memória por ser a que mais lhe agrado
captou, embarcara em uma grande alivadoura,
toda toldada de brocado com muitas bandeiras de seda e alcatifada e muitas
almofadas de brocado e batéis à volta que a levavam à toa, com os remeiros
todos vestidos de libré das cores da princesa que então era viva, e os batéis muito
embandeirados e pintados todos e os remos mui enramados e neles muitas folias
de homens e de mulheres muito bem vestidos das cores da princesa e muitos entremezes
e festas. E em El-Rei embarcando fez-lhe um conde uma surpresa e saiu o conde
de uma ponta onde estava escondido, com grande soma de barcas e batéis muito embandeiradas
e enramadas e todas com muitas bombardas que tiraram e com muitas trombetas e
atambores e grandes gritas, que pareceu muito bem. E com estes batéis e barcas
e outros muitos era o rio coberto deles, todo com folias, prazeres e
,entremezes e muitas trombetas bastardas, muitos atambores, muitas charamelas
e sacabuxas, muitas infindas
bombardas, que foi muito alegre festa por ser no Tejo, ai que tempo de saudades…
Nesse tempo e no tempo em que estava na capital do reino nos domingos e
dias santos e em que não ia à carreira e em alguns da semana ia folgar em um
batel embandeirado de seda levando sempre consigo música e algum oficial seu
com que ia despachando e as mais das vezes chegava ao cais dos paços
de Santos-o-Velho onde o Duarte, cavaleiro de sua casa, ou o Gil,
camareiro-mor, a quem em parte de satisfação de seus serviços dera o oficio de
guarda dele, lhes mandava trazer de merendar de muitas frutas verdes, conservas
e coisas de açucar, vinho e água, de que também comiam os fidalgos que a seu
chamado e se El-Rei estivesse de tal feição prazenteira, iam com ele no batel e
assim toda a mais companhia de músicos, moços fidalgos da câmara e remeiros, para
as quais merendas tinha mercês ordinárias que lhe El-Rei para isso fazia… Ai
que saudades…
El-Rei em tudo isto o que mais cultiva ainda é a música, paixão antiga…
Embora as suas muitas penas o levem cada vez menos a celebrar coisa que seja… -
Tragam flautins e outros sopros, e cordas que se tanjam. Quero ouvir música no meu palácio. Eh, lá, D. Bosta, quereis dançar
para nós?
O nobre Ataíde sentiu-se corar de humilhação. Não encarou seu rei para
responder. Levantou-se e deitou a fugir e fugido andava quando deu com a
entrada para a cozinha real. Uma azáfama de fogos, fumos, caldeirões e aves depenadas.
Um calor de morrer. Um cheiro de estontear. Mesmo assim, Ataíde sentou-se a um
canto, a sossegar. O primeiro a topá-lo foi o cozinheiro-mor, homem de grande
sabedoria e que fora à Índia com Vasco, o navegador, e os seus...
Recém-chegado, trouxera novas e muitas sabedorias de espantação variada, e não deixou de relacioná-las com o ar triste
do fidalgo.
Ousado, chegou-se o cozinheiro-mor a ele e perguntou-lhe que inquietação
era a sua, de que penas sofria. Ataíde, talvez da ocasião, do ambiente, do
cansaço, desabafou. Contou a sua pouca sorte, a pequeníssima vontade de viver,
o seu desinteresse, a sua apatia, a imbecilidade, o estupor em que vivia... Os
seus tormentos. A sua inabilidade para as pujanças requeridas num novo século
cheio de coisas tão vividas e ousadas...
O cozinheiro-mor ouviu-o. Melhores são os cozinheiros em audições que
os confessores; os cozinheiros são artistas da paciência em lumes brandos ou
fervuras...
Da amálgama dos condimentos operam sábias alquimias...» In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT