«Na
moderna História da Literatura Portuguesa, Bocage
é um caso paradigmático de recepção pública e leitura crítica marcadas pela
proliferação de vários lugares-comuns. Essas ideias-feitas são responsáveis por
uma imagem estereotipada do poeta, dentro e fora do sistema escolar:
- primeiro, identifica-se automaticamente o poeta com um vasto anedotário e a uma nociva popularidade;
- depois, enfatiza-se o lugar da sátira e do repentismo;
- ao mesmo tempo, difunde-se, clandestinamente, no passado, a sua poesia erótica;
- celebra-se ainda o poeta cantor da Liberdade;
- e reduz-se frequentemente Bocage a um poeta ilustrativo de um período pré-romântico de transição.
Ora,
esta visão redutora da obra de Bocage, com raízes na própria mentalidade
colectiva, em alguns aspectos, mas também potenciada pelo próprio sistema
escolar, está plenamente enraizada na história de dois séculos dos estudos
bocageanos. Com efeito, a evolução dos estudos bocageanos acompanha a sucessão
dos estilos de época, a formação do cânone literário no sistema escolar
oitocentista, os acasos da fortuna editorial e crítica, e ainda a singularidade
das visões do mundo de cada período. O conhecimento ainda que panorâmico da
recepção bocageana constitui-se como um dos fundamentos para uma renovada
prática de leitura e de ensino do poeta.
Deste
modo, a imagem que hoje temos do poeta, dentro e fora do sistema escolar, e o
ponto de chegada dos estudos bocageanos são, em grande medida, o resultado
dessa significativa construção que se foi sedimentando ao longo de várias
gerações, isto é, da múltipla recepção sucessivas aportações críticas sobre a
época, a vida e a obra de Bocage, ao longo de cerca de dois século. Sem
aspirações de história minuciosa dos estudos bocageanos, assinalemos apenas
algumas tendências maiores de Bocage. E vejamos como a imagem ainda hoje
transmitida pelo sistema escolar é devedora de uma construção elaborada ao
longo de cerca de dois séculos.
A obra de Bocage e os ecos dos seus
contemporâneos
Teófilo
Braga escreveu, repetidamente, que na nossa literatura há dois poetas que o
povo português conhece pelo nome próprio, Camões e Bocage. Consabidamente, a
enorme popularidade de Bocage, dentro e fora do campo literário, é atestada
pala confluência de vários índices, que convém enumerar, na sua manifesta
heterogeneidade e amplitude temporal:
- a edição, ainda em vida do poeta, de 3 volumes das suas Rimas, reunindo o essencial da sua criação poética;
- a enorme circulação de re-edições impressas, mas também de cópias manuscritas, mais ou menos clandestinas;
- as relações privilegiadas que manteve com outros escritores contemporâneos, com destaque para a marquesa de Alorna e Filinto Elísio, que manifestam o seu apreço pela obra bocageana;
- a polémica desencadeada em diversos momentos pelo próprio poeta, bem visível quer no afastamento do movimento arcádico, quer no relacionamento com José Agostinho de Macedo;
- a elogiosa recepção do público e da crítica, do seio da sociedade lisboeta às terras do Brasil, bem visível na considerável fortuna editorial e no considerável conjunto de estudos críticos;
- a repetida e reverenciadora aproximação de Bocage a Luís de Camões, começada em vida do poeta e enfatizada pela crítica romântica;
- a numerosa criação literária, poesia, teatro e narrativa, inspirada no poeta, como forma expressiva de homenagem, desde os contemporâneos do poeta até aos autores actuais;
- e as modernas adaptações da vida e obra do poeta para cinema e televisão, em Portugal e no Brasil.
Comentemos
mais atentamente alguns destes índices da singular recepção de Bocage, a
começar pelos ecos entre os coevos. Com efeito, há dados fundamentais que não
podemos esquecer a propósito da recepção bocageana:
- primeiro, o essencial da obra do poeta, cerca de três quatros, foi publicada em vida, sendo o restante dado a público postumamente;
- segundo, os testemunhos dos contemporâneos setecentistas revelam-se muito importantes para o estabelecimento da recepção coeva, mesmo conhecendo nós a natural oscilação e precariedade deste tipo de juízos.
Infelizmente,
com honrosas excepções, como o trabalho de Artur Anselmo, não está feito o
desejável e circunstanciado levantamento da fortuna editorial e crítica do
tempo de Bocage, exigindo moroso trabalho de pesquisa em arquivos e
bibliotecas.
Com
efeito, a decisiva fortuna editorial bocageana inicia-se com a publicação, em
vida, dos três primeiros volumes das Rimas,
logo a partir de 1791, na oficina do tipógrafo Simão Tadeu Ferreira. O volume inaugural conhece 2ª edição logo em
1794, enriquecida dum interessante “Prólogo” de Bocage, com “informações
do maior interesse autobiográfico e estético”, como realça Artur
Anselmo.
Também
o tomo II, com reedição em 1792, conta com um curioso peritexto autógrafo,
intitulado
“Ao
Leitor”, elucidando Bocage as singulares circunstâncias da organização
deste volume. Finalmente, em 1804, sai o tomo III das Poesias, dedicado à futura marquesa de Alorna e, mais uma vez,
com epígrafe retirada de Ovídio». In J. Cândido Martins, Ler e Ensinar Bocage hoje: Para o Estudo da Recepção de
Bocage, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e Culturas, edição
de António Manuel Ferreira & Paulo Alexandre Pereira (coordenador), Derivas, Aveiro, Ler e ensinar Bocage
hoje: o ensino e os lugares-comuns, UC Portuguesa, 2005.
Cortesia
de UC Portuguesa/JDACT