«Isso é impossível, bem o sei, pois não é só meu filho, é também o
Infante, herdeiro destes reinos, que se alevantou em guerra contra El-Rei, seu
pai e seu senhor. Mas como é duro ter de ser Rainha antes de poder ser mãe. O
som de passos, no exterior. Ao erguer-se, Beatriz repete a si mesma,
obsessivamente, ele empenhou-me a sua palavra, há-de jurar. O pano que cobre a
entrada da tenda é afastado, um homem pára no limiar. Pedro detém-se ali por
instantes. Não encara imediatamente a Rainha. Procura-os, diz para si mesmo
Álvaro Pais, que conhece o Infante melhor que todos os presentes, melhor que a
sua própria mãe. Procura-os. E ei-los, aí são. Um, Diogo Lopes, de cabeça
erguida, os outros dois ligeiramente curvados para não terem de sustentar
aqueles olhos que brilham numa chama fria e queimam como a geada.
Pedro contempla-os.
Bem me avisaram que aqui seriam os assassinos e agora folgo de o ter
sabido antes, ou havia de me lançar sobre eles ao vê-los. Não quis Deus que os
encontrasse em bom tempo, de armas nas mãos, enquanto pelejava Contra meu pai. Não
quis Deus que a minha sanha, tão bruta e tão justa, me desse a vitória para
poder fazer passear o meu cavalo sobre os seus corpos e folgar e rir
ouvindo-lhes os ossos a estalar, que os seus gritos haviam de ser o melhor
salmo para o ofício da vingança. Não quis Deus e agora aqui os vejo.
O instante destes pensamentos é intenso, porém breve. Pedro avança e dobra
um joelho diante da Rainha. Beatriz sorri, estende-lhe a mão, que ele beija. Então,
ao vê-lo tão perto, ao sentir nos dedos o contacto fugidio dos seus lábios,
hoje e sempre carne da sua carne, ela não resiste, puxa-o para si, abraça-o. Mas
o momento de emoção é passageiro, logo dominado. Quando fala é já outra vez a
Rainha e o seu tom é formal. - Sede bem-vindo, senhor meu filho.
Deliberadamente, abarca com o olhar todos os presentes. - A Deus
prazendo, esta será uma hora de paz e de concórdia. Para todos nós e para o
reino. Ao responder-lhe, a voz de Pedro é mais formal ainda, porque não tem
alma nem tem calor. - Senhora, a vós devemos esta paz, e o Infante, dirigindo-se
agora ao arcebispo, termina a frase, antes de se curvar para lhe beijar o anel:
- E também a vós, Gonçalo.
Calado e quieto, no seu canto, Álvaro Pais repara que Pedro não cessou
de lançar olhares fugidios a Diogo Lopes Pacheco, a Pero Coelho e a Álvaro
Gonçalves. Uma ideia teima em persegui-lo: ainda agora, que o vejo aqui , não
sou bem certo se jurará ou não. Se consentirá em esquecer tanto dano e tanto
nojo, de que ele se julga inocente. É mister que o faça, Deus o sabe e ele
também, mas fá-lo-á?
Álvaro Pais sacode para longe as suas dúvidas. Atento, atento, esta é
cousa para ver, ouvir e lembrar, cada gesto e cada palavra. A Rainha tomou
lugar no seu assento. Encostada ao espaldar, as mãos pousadas sobre os braços
da cadeira, faz um aceno ao escrivão, que pega novamente na folha de pergaminho
e começa a ler em voz alta.
- - Aos cinco dias do mês de Agosto do ano de Cristo de 1355, neste burgo de Canavezes, sendo presentes a senhora rainha D. Beatriz e o senhor Infante Pedro, e Gonçalo Pereira, arcebispo e senhor de Braga, e muitos ricos-homens e cavaleiros e outras pessoas mui principais, se faz este concerto entre El-Rei Afonso, nosso senhor, que por ser ausente depois o jurará e firmará, e o senhor Infante Pedro, seu filho e herdeiro. Jura El-Rei Afonso dar perdão geral a todos os que serviram o senhor Infante e lhe fizeram guerra e por mor do dito Infante o desserviram...
O escrivão interrompe a leitura, interroga com os olhos a rainha, que
faz um aceno de concordância.
- Da mesma forma, jura o senhor
Infante perdoar a todas as pessoas que de conselho e de feito, em qualquer maneira,
foram culpadas da morte de D. Inês Pires de Castro. É o momento. Todos os
rostos se voltaram para Pedro, cuja expressão dura, fechada, se recusa a que
leiam nela o que lhe vai lá dentro. Mas por força jurará, reza em silêncio Álvaro
Pais. Fazendo-lhe eco, o escrivão formula a pergunta ao Infante: - Assim o
jurais, senhor?
De novo Pedro, sem mover a cabeça, passeia o seu olhar de geada sobre
os três. E no entanto, argumenta Álvaro Pais, repetindo em silêncio o que já
disse, em vão, ao Infante, e no entanto Diogo Lopes não tem sobre ele o sangue
da Castro. Queria-lhe mal, como todo o reino, mas nada fez. Ao menos esse é
inocente, o Infante há-de por força...
- Assim o juro.
A voz de Pedro soou nítida, concreta. Ouvindo estas curtas palavras,
todos sentem os nervos afrouxar-se. O escrivão, contendo um suspiro de alívio,
retoma a leitura com mais facilidade porque se desfez o nó que lhe oprimia a
garganta:
- - Mais fica acertado que o senhor Infante será em tudo obediente a El-Rei, como bom filho e leal vassalo. E em todos os lugares do reino onde estiver, o senhor Infante usará de toda jurisdição e poder, alto e baixo, e as cartas que der se passarão em nome do Infante, o qual trará consigo ouvidores seus, os quais entenderão sobre os corregedores e quaisquer outros juízes de El-Rei. Porém em tudo guardarão suas leis e ordenações e nos casos das mortes e das condenações de perda de grandes ofícios e terras de seus vassalos, antes da execução da sentença o farão saber a El-Rei para sobre isso mandar o que houver por bem. E os pregoeiros, quando o Infante mandar fazer justiça, dirão: Justiça que manda fazer o Infante por mandado de El-Rei seu pai e em seu nome…
Álvaro Pais respira fundo.
Ele jurou. A paz voltou ao reino». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos
Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.
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