Guerra e cartografia
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Em 1744, Luís Cunha despachou vários
mapas de fortalezas militares que eram palcos de batalhas, no norte da Itália,
novo teatro da Guerra da Sucessão Austríaca, como o da cidadela de
Tortona, onde os espanhóis haviam aberto uma trincheira ao seu redor. O
mapa que remeteu, juntamente com a memória explicativa do que se passava,
serviria para ilustrar as movimentações militares que ocorriam na região,
permitindo que, em Portugal, se pudesse ter uma ideia exacta do cerco. Segundo
ele, que a dita fortaleza se pudesse
defender quarenta dias, do que eu duvido. Se ela for atacada como agora se costuma,
visto que o conde Gages tem toda a artilharia que era necessária para esta
operação e entretanto o marechal Maillbois cobre o dito sitio, estando acampado
a São Juliano. As suas observações esclareciam o que podia ser avistado
no mapa em questão. Já sobre a vitória que os aliados alcançaram na Sardenha,
no cerco da fortaleza de Conty, afirmou que não poderei informar melhor a v.e. desse sucesso que mandando-lhe o mapa
da mesma praça, que o jovem conde de Assumar, então residente em casa, tirou do
rascunho que o comendador Solar me remeteu e com a relação que o príncipe de
Conty mandou à corte. Seguiram ainda mais três pequenos mapas. Um
representava o mapa da praça de
Fribourg com os ataques, e outros dois eram de fortalezas situadas em
Flandres, a de Menin e a de Ipres, onde a guerra também chegara. A associação
entre cartografia e guerra é constante na correspondência de outros savants portugueses
da época. Em 1727, foi a vez do
marquês de Abrantes escrever a Francisco Mendes Góis, que se encontrava em
Paris servindo na embaixada portuguesa com Luís Cunha, especialmente
encarregado das compras régias, para que adquirisse alguns mapas para a sua
colecção. Entre outros tantos, encomendava um que agora vi na gazeta, que na Holanda se estamparam plantas de
Gibraltar, em Espanha, e de Cartagena em Índias, como teatros da guerra presente; [e] se chegaram a esta corte
também folgarei de as ter para
compreensão das gazetas. As instruções do marquês ressaltam essa
capacidade dos mapas de dar a ver o que acontecia no teatro do mundo,
especialmente no que dizia respeito à guerra. O mapa permitiria ainda que ele
visualizasse o que a gazeta veiculava a respeito das disputas, da movimentação
das tropas. Um meio de informação complementando o outro.
O
marquês ainda recomendou em outro de seus pedidos que o que eu queria era uma carta dos Países Baixos, iluminada
ou lavada à moda de Holanda, de sorte que as cores denotem o
país que possui França, o imperador na Holanda e nas vizinhas Prússia, Liege, Colónia;
uma carta de Europa, com distinção do que possui a casa de Áustria, os reis de
Prússia e de Inglaterra. A
utilização de cores nos mapas para diferenciar as possessões de uma ou outra
Coroa, como a sugerida pelo marquês de Abrantes, era expediente comum e
evidenciava as intenções territoriais das diversas cortes europeias num século
marcado pelas intenções expansionistas de cada uma delas, empreendidas por meio
de guerras, fossem na Europa, fossem nos demais continentes, como era o caso da
América. As cores eram tão comumente
partes integrantes do mapa que não podem ser desmerecidas como um ingrediente
puramente decorativo; nesse caso permitiam visualizar as pretensões
territoriais de cada nação no continente europeu, ainda que tais territórios
fossem descontínuos entre si. Numa outra missiva, o marquês, desta feita, pede meia dúzia de folhas de papel que
representem a Europa sem raias de cores, ou com elas postas. Nesse
caso, diferentemente dos mapas anteriores, onde a diversidade de cores era
desejada para evidenciar as diferentes possessões que cada Coroa possuía nos
cantões da Europa, preferia que os mapas viessem sem as raias divisórias. Dessa
maneira ele afirma: teria à disposição mapas onde poderia brincar com as fronteiras, posicionando-as a seu bel prazer,
configurando diferentes conformações nacionais, pois o que queria era fazer daqueles nossos projectos sobre a carta,
(...) como nós costumávamos discorrer, jogando xadrez. Assim apontava
para outro uso dado aos mapas no teatro das guerras europeias. Nesse caso, como
num tabuleiro de xadrez, é o leitor/jogador, e não o produtor do mapa, que
dispõe e muda as linhas que marcam as fronteiras nacionais. Num contexto de
intensa rivalidade entre as nações, como foi o século XVIII, quando as guerras
e, depois, os tratados de paz provocavam uma intensa mobilidade de territórios,
um mapa sem as fronteiras demarcadas de antemão permitia que seu usuário
simulasse os possíveis resultados das guerras e das negociações em curso.
Assim, quando esses mapas sem as raias demarcatórias chegam a Lisboa, o marquês
agradece ao amigo o facto de terem vindo junto com uma carta cheia de notícias políticas que estimo e
lhe agradeço, por se me representar com elas que estamos sobre a carta geográfica
fazendo projectos.
Luís Cunha, que prezava a geografia e possuía amplo domínio sobre o
assunto é bastante crítico em relação àqueles que não o tinham. Quando, em 1726, uma expedição moscovita se
deslocava em direcção ao mar Báltico, comenta que o duque Miguel José
Bournonville, embaixador da corte de Madrid em Viena, dissera que o mais certo
é que se destinasse ao mar Cáspio, a fim de sustentar as conquistas feitas na
Pérsia, ao que ele respondera de forma jocosa que bem poderia ser, mas que só se lhe oferecia uma pequena
dificuldade, que era a de poder aquela armada passar ao dito mar que estava rodeado
de grandes espaços de terra, reparo de que o duque ficara justamente
envergonhado. Sarcástico e sagaz, Luís Cunha comenta que à vista disto eu o tenho por muito mau
geógrafo, mas não é ignorante dos seus próprios interesses». In
Júnia Ferreira Furtado, Guerra, Diplomacia e mapas, A guerra da Sucessão
Espanhola, O Tratado de Utrecht e a América Portuguesa na cartografia de
D’Anville, revista Topoi, v,. 12, nº 23, 2011.
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