domingo, 2 de março de 2014

Guerra. Diplomacia e mapas. A guerra da Sucessão Espanhola. Júnia F. Furtado. «… que bem poderia ser, mas que só lhe oferecia uma pequena dificuldade, que era a de poder aquela armada passar ao dito mar que estava rodeado de grandes espaços de terra…»

Cortesia de wikipedia

Guerra e cartografia
«(…) Em 1744, Luís Cunha despachou vários mapas de fortalezas militares que eram palcos de batalhas, no norte da Itália, novo teatro da Guerra da Sucessão Austríaca, como o da cidadela de Tortona, onde os espanhóis haviam aberto uma trincheira ao seu redor. O mapa que remeteu, juntamente com a memória explicativa do que se passava, serviria para ilustrar as movimentações militares que ocorriam na região, permitindo que, em Portugal, se pudesse ter uma ideia exacta do cerco. Segundo ele, que a dita fortaleza se pudesse defender quarenta dias, do que eu duvido. Se ela for atacada como agora se costuma, visto que o conde Gages tem toda a artilharia que era necessária para esta operação e entretanto o marechal Maillbois cobre o dito sitio, estando acampado a São Juliano. As suas observações esclareciam o que podia ser avistado no mapa em questão. Já sobre a vitória que os aliados alcançaram na Sardenha, no cerco da fortaleza de Conty, afirmou que não poderei informar melhor a v.e. desse sucesso que mandando-lhe o mapa da mesma praça, que o jovem conde de Assumar, então residente em casa, tirou do rascunho que o comendador Solar me remeteu e com a relação que o príncipe de Conty mandou à corte. Seguiram ainda mais três pequenos mapas. Um representava o mapa da praça de Fribourg com os ataques, e outros dois eram de fortalezas situadas em Flandres, a de Menin e a de Ipres, onde a guerra também chegara. A associação entre cartografia e guerra é constante na correspondência de outros savants portugueses da época. Em 1727, foi a vez do marquês de Abrantes escrever a Francisco Mendes Góis, que se encontrava em Paris servindo na embaixada portuguesa com Luís Cunha, especialmente encarregado das compras régias, para que adquirisse alguns mapas para a sua colecção. Entre outros tantos, encomendava um que agora vi na gazeta, que na Holanda se estamparam plantas de Gibraltar, em Espanha, e de Cartagena em Índias, como teatros da guerra presente; [e] se chegaram a esta corte também folgarei de as ter para compreensão das gazetas. As instruções do marquês ressaltam essa capacidade dos mapas de dar a ver o que acontecia no teatro do mundo, especialmente no que dizia respeito à guerra. O mapa permitiria ainda que ele visualizasse o que a gazeta veiculava a respeito das disputas, da movimentação das tropas. Um meio de informação complementando o outro.
O marquês ainda recomendou em outro de seus pedidos que o que eu queria era uma carta dos Países Baixos, iluminada ou lavada à moda de Holanda, de sorte que as cores denotem o país que possui França, o imperador na Holanda e nas vizinhas Prússia, Liege, Colónia; uma carta de Europa, com distinção do que possui a casa de Áustria, os reis de Prússia e de Inglaterra. A utilização de cores nos mapas para diferenciar as possessões de uma ou outra Coroa, como a sugerida pelo marquês de Abrantes, era expediente comum e evidenciava as intenções territoriais das diversas cortes europeias num século marcado pelas intenções expansionistas de cada uma delas, empreendidas por meio de guerras, fossem na Europa, fossem nos demais continentes, como era o caso da América. As cores eram tão comumente partes integrantes do mapa que não podem ser desmerecidas como um ingrediente puramente decorativo; nesse caso permitiam visualizar as pretensões territoriais de cada nação no continente europeu, ainda que tais territórios fossem descontínuos entre si. Numa outra missiva, o marquês, desta feita, pede meia dúzia de folhas de papel que representem a Europa sem raias de cores, ou com elas postas. Nesse caso, diferentemente dos mapas anteriores, onde a diversidade de cores era desejada para evidenciar as diferentes possessões que cada Coroa possuía nos cantões da Europa, preferia que os mapas viessem sem as raias divisórias. Dessa maneira ele afirma: teria à disposição mapas onde poderia brincar com as fronteiras, posicionando-as a seu bel prazer, configurando diferentes conformações nacionais, pois o que queria era fazer daqueles nossos projectos sobre a carta, (...) como nós costumávamos discorrer, jogando xadrez. Assim apontava para outro uso dado aos mapas no teatro das guerras europeias. Nesse caso, como num tabuleiro de xadrez, é o leitor/jogador, e não o produtor do mapa, que dispõe e muda as linhas que marcam as fronteiras nacionais. Num contexto de intensa rivalidade entre as nações, como foi o século XVIII, quando as guerras e, depois, os tratados de paz provocavam uma intensa mobilidade de territórios, um mapa sem as fronteiras demarcadas de antemão permitia que seu usuário simulasse os possíveis resultados das guerras e das negociações em curso. Assim, quando esses mapas sem as raias demarcatórias chegam a Lisboa, o marquês agradece ao amigo o facto de terem vindo junto com uma carta cheia de notícias políticas que estimo e lhe agradeço, por se me representar com elas que estamos sobre a carta geográfica fazendo projectos.
Luís Cunha, que prezava a geografia e possuía amplo domínio sobre o assunto é bastante crítico em relação àqueles que não o tinham. Quando, em 1726, uma expedição moscovita se deslocava em direcção ao mar Báltico, comenta que o duque Miguel José Bournonville, embaixador da corte de Madrid em Viena, dissera que o mais certo é que se destinasse ao mar Cáspio, a fim de sustentar as conquistas feitas na Pérsia, ao que ele respondera de forma jocosa que bem poderia ser, mas que só se lhe oferecia uma pequena dificuldade, que era a de poder aquela armada passar ao dito mar que estava rodeado de grandes espaços de terra, reparo de que o duque ficara justamente envergonhado. Sarcástico e sagaz, Luís Cunha comenta que à vista disto eu o tenho por muito mau geógrafo, mas não é ignorante dos seus próprios interesses». In Júnia Ferreira Furtado, Guerra, Diplomacia e mapas, A guerra da Sucessão Espanhola, O Tratado de Utrecht e a América Portuguesa na cartografia de D’Anville, revista Topoi, v,. 12, nº 23, 2011.

Cortesia de Topoi/JDACT