«(…) Que bela figuraça. As anquinhas firmes, o peito enfunado como
pombo de garbo ou vela de nau espicaçada ao vento, pernas torneadas, longas, cara
de tracinhos miúdos de muito bom e belo desenho e recorte, e depois o nariz
perfeito e sob este o bigode fino e sempre muito bem aparado, os cabelos de
caracóis, assim para o claro, e entre todos os dotes o da voz, uma voz de grande
efeito, que usava para os cantares das coisas de coração quando se dirigia às
damas que, todas, suspiravam por ele. Aliás, Júlio só tinha três
interesses: trovar, cantar canções de moda, gozar com elas e fazer com elas que
todos gozassem muito; as artimanhas airosas do jogo da péla, onde se
distinguia muito pelas habilidades; e coitar, uma arte que praticava muito, com
muita sabedoria, e que lhe dava para viver folgadamente. Era má rês, de má
catadura e maus princípios, embora desdissesse na figura o mau feitio que
encerrava. Era assim Júlio, tornado dom por favores de princesa. Era
assim, um femeeiro de raça.
Dizia-se dele que já tinha tido em sortes de leito todas as damas da
corte católica, mesmo as que se benziam mais, penetrava-lhes no quarto, no
peito e no corpinho em clandestinas noutes, trepava varandas e juízos, punha-se
nelas e deixava-as encantadas, e saía depois como uma sombra sem remorsos, já a
pensar na que se seguiria. Os do Santo Oficio (maldito)
andavam de olho nele, embora não se preocupassem, pois não fazia coisas de
bruxo, não era judeu nem mouro, e deflorar damas ou trespassá-las de amores não
é nestes tempos o maior crime de desrespeitar Deus, e ao que parecia nenhuma
dama se queixava e nenhum fidalgo se quisera até então tomar de vinganças, e
coitos em corte com este e aquela é coisa meio comum a que se deve fazer vista
grossa. Júlio coitava e seguia em boa vida airada, cantava pelo meio,
tinha energias para tudo, e era uma simpatia, até a rainha zelava por ele e o
rei gozava ao ouvi-lo cantarolar, e a princesa dava-lhe sortes e favores, não
era por isso necessária a fogueira, nem mesmo a ralação dos muito bons
cuidadores da moral e bons costumes.
Estava Júlio a cantar uma cantiga antiga, dessas que passaram de moda
mas que ainda são uso por serem antigas e airosas, se bem que esta não falava
de amores, Júlio cantava-a só para se ouvir, e talvez fosse então sincero, por
saber-se a natureza que tinha, e porque pensava intimamente que aos maus tudo
corre bem e aos bons tudo corre mal e que há grande inconveniente em dizer a
verdade nestes tempos em que uma boa mentira, mesmo nada tendo de piedade,
serve muito mais altos valores que uma verdade irredutível:
- Ca vej'eu ir melhor ao mentireyro
c'ao que drz verdade ao seu amigo;
e por auesto o jur'e digo,
que já mays nunca seja verdadeyro,
mais mentirey e firmarey log'al:
e assi guarrei como cavaleyro.
A tristeza é que Júlio não cantava isto como sátira trovadoresca,
estava firmemente convicto de que a mentira tem valor dobrado da verdade. Estava
assim cantando em sinceridade, enquanto tratava seus bigodes famosos que às
damas arrepiavam e que até inveja criavam entre fidalgos machos. Bateram-lhe à
porta e ele calou-se. Foi demandar do que lhe queriam e viu, embuçada, uma ara
da princesa. - Vinde. Júlio não foi logo. Puxou a aia para dentro de casa e repenicou-lhe
beijos e passou-lhe ambas mãos por baixo do embuço e das vestes, e a aia
sentiu-se agradecida da sua sorte, suspirou amiúde, e, depois de muito contentada,
lá explicou ao que vinha e ao que vinha era que a princesa queria dar-lhe, em
pessoa, um recado muito grande. Júlio repôs os calções que tirara, passou
escova em cabelos de cabeça e de buço, alindou-se e seguiu a aia cantarolando».
In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
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