segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Espelhos. Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica. 1450-1700. Maria de Lurdes C. Fernandes. «… para os finais da Idade Média, a posição que, hoje, é mais conhecida, aquela que o registo escrito trouxe até nós, é a que foi veiculada por teólogos, clérigos e religiosos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Virgindade e casamento. Status religiosorum e status laicorum nos fins da Idade Média e primeira metade do século XVI
«(…) Além disso, se, para os finais da Idade Média, a posição que, hoje, é mais conhecida, aquela que o registo escrito trouxe até nós, é a que foi veiculada por teólogos, clérigos e religiosos, muito especialmente a do omnipresente modelo monástico que defendia o afastamento e desprezo do mundo, acompanhada ou apoiada pela reelaboração das perspectivas que, na linha de S. Paulo e dos padres da Igreja (especialmente S. Ambrósio, S. Jerónimo, S. João Crisóstomo e Santo Agostinho), viam no casamento, sobretudo, um remédio para a concupiscência carnal, ela não é, contudo, única. De facto, cremos não ser correcto falar-se de uma concepção do casamento, nem para os mil anos da Idade Média, e muito menos para estes fins, nem para os séculos XVI e XVII. Nem tão pouco de uma perspectiva por parte dos religiosos e clérigos ou de uma perspectiva por parte dos leigos, até porque são óbvias e constantes as dependências doutrinárias destes em relação àqueles. Além disso, não podemos esquecer a necessária diferenciação entre matrimónio, sacramento e instituição, e vida conjugal, uma vez que, apesar da sua interdependência, colocam problemas específicos, devendo muitas das críticas ser compreendidas no contexto de alusões à vida conjugal e não ao matrimónio enquanto instituição, e muito menos enquanto sacramento. Acresce ainda o facto de a própria definição, quando não mesmo as definições, de casamento depender não só do privilegiar a instituição ou o estado, mas também da sua instrumentalização pelos vários grupos sociais, de acordo com regras próprias ou com finalidades particulares, de que se deverão salientar os por demais conhecidos objectivos de aliança ou de linhagem nos casamentos da nobreza.
Deste modo, as orientações de algumas críticas ou o desenvolvimento de algumas polémicas, nestes finais da Idade Média e início dos Tempos Modernos, serão mais facilmente perceptíveis se tivermos em conta o necessário enquadramento destes vectores do problema, bem como as origens e as orientações, as causas e os propósitos dessas críticas ou dessas polémicas, sobretudo aquelas em que participaram vários dos grandes humanistas europeus dos séculos XV e XVI. Deverão, nesta sequência, colocar-se algumas questões básicas. Por exemplo, o muito referido desprezo pelo estado do casamento, do ponto de vista dos valores espirituais, bem como a visão depreciadora do mesmo aliada à representação negativa das influências femininas, que origens e que justificações têm? Que autores e em que contextos, das suas obras e dos objectivos destas, são referidos? Além disso, caberá questionar a existência, entre os não religiosos, da consciência dessa inferioridade... Em caso positivo, como e em que se manifestava? Como influía, se influía, na prática quotidiana e na opção de estado? O desfasamento, derivado da sua especificidade, entre o modelo de vida religiosa e o mundo dos leigos cristãos, nomeadamente dos casados, não contribuiria para um acentuar da distância, resultante de uma certa incompatibilidade, entre ambos?
Por outro lado, não terão contribuído as perspectivas que condenavam, muitas vezes com propósito de reforma, a imoralidade dos clérigos e mesmo dos religiosos para acentuar o não respeito, que implicava diluição da oposição, dos leigos em relação ao estado religioso? Além destas questões básicas, que teremos presentes ao longo deste trabalho, há que referir que a tradição cortesã enaltecedora e cultivadora do amor cortês (que chegou a coexistir com a visão mais monástica da sociedade e da vida humana), ao desprezar o casamento através do culto, explícito ou não, do adultério, não o fazia para lhe preferir a virgindade e o celibato religioso ou mesmo para enaltecer a castidade, mas, sim, porque, sobrevalorizando o fin'amors, considerava impossível a coexistência deste com o casamento, dado o carácter simultaneamente utilitário e não voluntário deste, especialmente na alta nobreza. Lembremos igualmente que, se para os cultivadores do amor cortês o desprezo pelo casamento se relacionava grandemente com o carácter obrigatório deste, nos seus mais amplos aspectos, para os religiosos, as dimensões mais características e mais próprias do casamento (nomeadamente a concepção e nascimento dos filhos) eram também as que mais estavam ligadas aos aspectos carnais e, portanto, mais próximos da miséria da condição humana, exemplarmente, e polemicamente, realçada por Inocêncio III e pelo próprio Petrarca, numa linha de pensamento que já S. Jerónimo havia evidenciado». In Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.

Cortesia de ICP/FLFP/JDACT