«No outro lado da sala estava a mãe de Peter, tapando a boca com a mão
para esconder o riso. - Desculpe, pai – disse Peter. – Esqueci-me de que estava
aí. Pouco tempo depois de ter feito 10 anos, foi-lhe confiada a missão de levar
Kate, a irmã de 6 anos, à escola. Peter e Kate andavam na mesma escola. A pé,
demoravam um quarto de hora e, de autocarro, era uma viagem pequeníssima.
Normalmente iam a pé com o pai, que os deixava na escola quando ia para o
emprego. Mas os pais acharam que ambos já tinham idade para irem sozinhos de
autocarro e atribuíram a Peter a responsabilidade de tomar conta da irmã.
Tinham de sair na segunda paragem, ao fundo da rua, mas, pela
insistência dos pais, até parecia que Peter ia levar Kate para o pólo norte. Na
véspera, à noite, recebeu todas as instruções. E, assim que acordou, teve de
ouvi-las outra vez. Ao pequeno-almoço, os pais repetiram tudo e, quando já
estavam à porta da rua, a mãe, Viola
Fortune, relembrou-lhe as regras ainda uma vez. ‘Devem achar que sou estúpido’,
pensou Peter. ‘Se calhar, sou’. Tinha de ir sempre de mão dada com Kate.
Tinham de sentar-se no andar de baixo, ficando Kate do lado da janela. Não podiam
conversar com pessoas que tivessem ar de loucas ou más. Peter tinha de dizer em
voz alta ao motorista o nome da paragem em que iria sair, sem se esquecer de
acrescentar ‘por favor’. Tinha de ir
sempre a ver o caminho.
Repetiu tudo isto à mãe e foi com a irmã para a paragem do autocarro.
Foram todo o caminho de mãos dadas. Ele até nem se importava muito porque, para
dizer a verdade, gostava de Kate. Só esperava que nenhum dos amigos o visse de
mão dada com uma rapariga. O autocarro chegou. Entraram e sentaram-se no andar
de baixo. Era ridículo irem ali sentados de mão dada e, como estavam rapazes da
escola no autocarro, largaram as mãos. Peter sentia-se muito orgulhoso. Era
capaz de tomar conta da irmã onde quer que fosse. Ela podia contar com ele.
Mesmo imaginando que estavam os dois sozinhos num desfiladeiro e que, de
repente, aparecia à sua frente uma alcateia de lobos esfomeados, ele saberia
exactamente o que fazer, Com muito cuidado, para não fazer nenhum movimento
brusco, afastou-se com Kate, até se encostarem a uma rocha grande. Assim, os lobos
não conseguiriam cercá-los. Depois tirou do bolso duas coisas importantes, que
não se esquecera de levar, a faca de mato e uma caixa de fósforos. Desembainhou
a faca e pousou-a no chão, bem à mão para o caso de os lobos atacarem. Estavam
a aproximar-se. Estavam tão esfomeados que vinham a espumar, a rosnar e a
latir. Kate estava a soluçar, mas ele não podia consolá-la. Tinha de concentrar-se
no plano. Aos seus pés havia folhas e ramos secos. Rápida e habilmente, Peter apanhou-os
e empilhou-os. Os lobos estavam cada vez mais perto. Não podia falhar. Na caixa
só havia um fósforo. Já sentiam o bafo dos lobos, aquele fedor horrível a carne
podre. Peter baixou-se, pôs a mão em concha e acendeu o fósforo. Soprou uma
rajada de vento, a chama tremeu, mas Peter aproximou-a das folhas e, primeiro
uma, depois outra, depois todas elas começaram a arder até formar uma pira
incandescente. Foi juntando mais folhas e ramos maiores. Kate percebeu a ideia
dele e deu uma ajuda. Os lobos começaram a afastar-se (os animais selvagens têm
um medo pavoroso do fogo). As chamas subiram cada vez mais alto e o vento
começou a levar o fumo mesmo para dentro daquelas bocarras cheias de baba. Peter
pegou na faca de mato e…
Que ridículo! Punha-se naqueles devaneios e, senão tivesse cuidado,
ainda deixava passar a paragem sem sair. O autocarro estava parado. Os miúdos
da escola já estavam a sair. Peter pôs-se de pé num salto e desceu no preciso
momento em que o autocarro começou a andar outra vez. Quando ia já a uns
cinquenta metros de distância deu pela falta de qualquer coisa. Seria a mochila?
Não! Era a irmã! Tinha-a salvo dos lobos, mas deixara-a sentada no autocarro. Por
um instante não conseguiu mexer-se. Ficou parado a ver o autocarro a afastar-se».
In
Ian McEwan, The Daydreamer, 1994, O Sonhador, Gradiva, Lisboa, 1999, ISBN
972-662-408-8.
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