sábado, 8 de dezembro de 2012

O Sonhador. Ian McEwan. «Quando ia já a uns cinquenta metros de distância deu pela falta de qualquer coisa. Seria a mochila? Não! Era a irmã! Tinha-a salvo dos lobos, mas deixara-a sentada no autocarro. Por um instante não conseguiu mexer-se»

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«No outro lado da sala estava a mãe de Peter, tapando a boca com a mão para esconder o riso. - Desculpe, pai – disse Peter. – Esqueci-me de que estava aí. Pouco tempo depois de ter feito 10 anos, foi-lhe confiada a missão de levar Kate, a irmã de 6 anos, à escola. Peter e Kate andavam na mesma escola. A pé, demoravam um quarto de hora e, de autocarro, era uma viagem pequeníssima. Normalmente iam a pé com o pai, que os deixava na escola quando ia para o emprego. Mas os pais acharam que ambos já tinham idade para irem sozinhos de autocarro e atribuíram a Peter a responsabilidade de tomar conta da irmã.
Tinham de sair na segunda paragem, ao fundo da rua, mas, pela insistência dos pais, até parecia que Peter ia levar Kate para o pólo norte. Na véspera, à noite, recebeu todas as instruções. E, assim que acordou, teve de ouvi-las outra vez. Ao pequeno-almoço, os pais repetiram tudo e, quando já estavam à porta da rua, a mãe, Viola Fortune, relembrou-lhe as regras ainda uma vez. ‘Devem achar que sou estúpido’, pensou Peter. ‘Se calhar, sou’. Tinha de ir sempre de mão dada com Kate. Tinham de sentar-se no andar de baixo, ficando Kate do lado da janela. Não podiam conversar com pessoas que tivessem ar de loucas ou más. Peter tinha de dizer em voz alta ao motorista o nome da paragem em que iria sair, sem se esquecer de acrescentar ‘por favor’. Tinha de ir sempre a ver o caminho.
Repetiu tudo isto à mãe e foi com a irmã para a paragem do autocarro. Foram todo o caminho de mãos dadas. Ele até nem se importava muito porque, para dizer a verdade, gostava de Kate. Só esperava que nenhum dos amigos o visse de mão dada com uma rapariga. O autocarro chegou. Entraram e sentaram-se no andar de baixo. Era ridículo irem ali sentados de mão dada e, como estavam rapazes da escola no autocarro, largaram as mãos. Peter sentia-se muito orgulhoso. Era capaz de tomar conta da irmã onde quer que fosse. Ela podia contar com ele. Mesmo imaginando que estavam os dois sozinhos num desfiladeiro e que, de repente, aparecia à sua frente uma alcateia de lobos esfomeados, ele saberia exactamente o que fazer, Com muito cuidado, para não fazer nenhum movimento brusco, afastou-se com Kate, até se encostarem a uma rocha grande. Assim, os lobos não conseguiriam cercá-los. Depois tirou do bolso duas coisas importantes, que não se esquecera de levar, a faca de mato e uma caixa de fósforos. Desembainhou a faca e pousou-a no chão, bem à mão para o caso de os lobos atacarem. Estavam a aproximar-se. Estavam tão esfomeados que vinham a espumar, a rosnar e a latir. Kate estava a soluçar, mas ele não podia consolá-la. Tinha de concentrar-se no plano. Aos seus pés havia folhas e ramos secos. Rápida e habilmente, Peter apanhou-os e empilhou-os. Os lobos estavam cada vez mais perto. Não podia falhar. Na caixa só havia um fósforo. Já sentiam o bafo dos lobos, aquele fedor horrível a carne podre. Peter baixou-se, pôs a mão em concha e acendeu o fósforo. Soprou uma rajada de vento, a chama tremeu, mas Peter aproximou-a das folhas e, primeiro uma, depois outra, depois todas elas começaram a arder até formar uma pira incandescente. Foi juntando mais folhas e ramos maiores. Kate percebeu a ideia dele e deu uma ajuda. Os lobos começaram a afastar-se (os animais selvagens têm um medo pavoroso do fogo). As chamas subiram cada vez mais alto e o vento começou a levar o fumo mesmo para dentro daquelas bocarras cheias de baba. Peter pegou na faca de mato e…
Que ridículo! Punha-se naqueles devaneios e, senão tivesse cuidado, ainda deixava passar a paragem sem sair. O autocarro estava parado. Os miúdos da escola já estavam a sair. Peter pôs-se de pé num salto e desceu no preciso momento em que o autocarro começou a andar outra vez. Quando ia já a uns cinquenta metros de distância deu pela falta de qualquer coisa. Seria a mochila? Não! Era a irmã! Tinha-a salvo dos lobos, mas deixara-a sentada no autocarro. Por um instante não conseguiu mexer-se. Ficou parado a ver o autocarro a afastar-se». In Ian McEwan, The Daydreamer, 1994, O Sonhador, Gradiva, Lisboa, 1999, ISBN 972-662-408-8.

Cortesia de Gradiva/JDACT