O Profeta do Orvalho
Em tantos lugares me perdi
Em tantos lugares me perdi
que hoje, para me encontrar, não me basta
nem mapa, nem bússola, nem sextante.
Eu sou o que sempre se perdeu na memória
que de si deixou no coração dos outros.
Lembras-te de mim, Arrusi, negra bonita
com olhos incendiados pela luz matutina da savana?
Lembras-te do teu marinheiro de mansas falas,
que se fazia ao mar como quem parte
para o último reduto do coração das estrelas?
Tornou-se parco para mim o mundo
com tantos afectos dispersos pelos portos
onde nenhum vento de monção me fará voltar.
Meu amigo Camilo Pessanha
Meu amigo Camilo Pessanha, como nós
entristecemos por razões desiguais
na teimosa penumbra dos retratos,
ambos feridos pela doença desta distância
que de um só golpe nos liberta e nos cativa.
O que seria da nossa escrita sem este Oriente
que nos deu uma nova alma, feita de tédio
e melancolia, deixando refém essa outra alma
com que nascemos portugueses e do mundo,
amantes inebriados pela tentação do longe?
Estamos lado a lado nos retratos, almas penadas
por longínquas servidões, respondendo
quando nos chamam pelos nomes gentios
que nos foram dados para venerarmos os deuses.
Eis-me, marinheiro sábio
Eis-me, marinheiro sábio, no exílio da terra,
corpo alongado sobre uma colcha de seda
como se estivesse esquecido e perdido do tempo
sobre a erva humedecida pelo orvalho,
na claridade baça do amanhecer de Kobe.
Aqui deixei de saber o que é a pressa,
o que é o tempo perseguido na voragem dos dias,
o que é o sonho evaporado no temor das viagens.
Ancorei neste espanto inominável, neste areal
de assombros em que se perde a lembrança e a face
e em que nos tornamos outros na memória de nós.
Poemas de Wenceslau de Moraes,
in ‘O Profeta do Orvalho’
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