sábado, 8 de dezembro de 2012

Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos. Bento de Jesus Caraça. Alberto Pedroso. «… o pequeno Bento vivesse o primeiro dos acontecimentos marcantes da sua vida, a chegada do primeiro livro, trazido pela mão de José Percheiro, um trabalhador migrante sem eira nem beira, em busca de trabalho»

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Semeador de Cultura e Cidadania
«Mas o que já é conhecido acerca da sua vida , da intervenção que teve em áreas essenciais da sociedade portuguesa do seu tempo, no ensino, na cultura, na vida cívica, permite avaliar a dimensão e a qualidade dessa intervenção, quanto ela foi determinante em tantos casos. Levada a cabo nas condições mais adversas, a sua obra pedagógica, cultural e cívica é certamente uma das mais fecundas de todas as que foram empreendidas no nosso país ao longo do século que findou.
Por tudo isto, é bem compreensível que de Bento Caraça se diga, com inteira justiça e servindo-nos das suas próprias palavras, que ele foi um daqueles intelectuais que se conservaram sempre fiéis à sua própria classe e aos seus ideais de emancipação humana e não desertaram ingressando no tampo contrário.

Do Monte Alentejano à Cátedra Universitária
Alentejano, de Vila Viçosa, filho de humildes camponeses alentejanos sem terra, Bento de Jesus Caraça nasceu a 18 de Abril de 1901, numa dependência modesta do Convento das Chagas, utilizada pela Casa de Bragança para alojamento dos seus serviçais. Dois meses mais tarde, seu pai foi contratado como feitor por Raul Albuquerque, proprietário da herdade de Casa Branca, na freguesia de Montoito.
Não foi muito longa a permanência no monte. Mas durou o tempo suficiente para que o pequeno Bento vivesse o primeiro dos acontecimentos marcantes da sua vida, a chegada do primeiro livro, trazido pela mão de José Percheiro, um trabalhador migrante sem eira nem beira, em busca de trabalho. Admitido para as lides da lavoira, por ali se conservou por algum tempo, até que um dia mostrou ao seu pequeno companheiro das escassas horas de folga um livro de leitura escolar que trazia no alforge.
Maravilhado, o pequeno Bento logo na primeira lição ficou conhecendo o abecedário e, pouco tempo depois, já lia correntemente todo o livro, deixando boquiaberto o improvisado mestre-escola. Camponês errante, José Percheiro bem depressa meteu pés ao caminho em demanda de outros lugares. Mas não o fez sem antes deixar nas mãos de Bento o livro maravilhoso e de, com insistência, aconselhar a mãe a não deixar de o mandar à escola, pois ele ‘não era uma criança como as outras’. Bento Caraça não terá perdido para sempre o rasto deste seu primeiro "mestre":
  • existe no seu espólio uma carta de José Percheiro (então hospitalizado e inválido), com a data de Dezembro de 1932 e enviada de Alcobaça, na qual alude e agradece o apoio que Bento Caraça lhe dava.
Surpreendida e fascinada com as invulgares capacidades intelectuais reveladas pelo filho do seu feitor, a mulher do proprietário, D. Jerónima, não tardou em sugerir a seus pais assumir o encargo do seu sustento e educação. Bento deixou, assim, aos cinco anos, o seu monte, passando a viver em Vila Viçosa, num quarto que D. Jerónima lhe destinou na sua casa. A partir deste momento e até à chegada ao Liceu Normal de Pedro Nunes, em Lisboa, não há outra memória do percurso feito por Bento Caraça, a não ser aquele testemunho em boa hora deixado pelo seu amigo e condiscípulo na escola primária de Vila Viçosa, António Lobo Vilela. Pouco conhecido e raramente citado, é, no entanto, um documento valioso que vem trazer luz sobre essa fase tão ignorada de Bento Caraça. Vale a pena recordá-lo:
  • Fui condiscípulo de Bento Caraça na escola primária cuja professora era minha prima, D. Ana da Silva Reis, senhora bondosa mas severa que, seguindo os preceitos da pedagogia da época, despertava as inteligências preguiçosas com ruidosas séries de palmatoadas, e deixava as pequeninas mãos inchadas e entorpecidas. O Bento Caraça, aluno excepcional, deve ter sido um dos raros discípulos de D. Ana que nunca experimentou a humilhação e a dureza da palmatória. Naquele tempo, a tabuada era recitada em coro, numa cantilena que acabava por ficar no ouvido de todos, mas, antes disso, era preciso que alguém a conhecesse já para dar as entradas: sete vezes oito, cinquenta e seis; sete vezes nove... O Caraça, com a sua voz suave e firme, era já, nessa época, um admirável chefe de naipe”.
Da passagem pelo Liceu de Sá da Bandeira, em Santarém, que frequentou durante três anos, apenas sobreviveu o certificado do júri de exame do terceiro ano». In Alberto Pedroso, Bento de Jesus Caraça, Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos, Campo das Letras Editores, Porto, colecção Cultura Portuguesa (1.38.010), 2007, ISBN 978-989-625-128-4.

Cortesia de Campo das Letras/JDACT