domingo, 6 de janeiro de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Mas o meu intento é somente recordar quem é o protagonista do drama de Coimbra: dotado de tais virtudes e tão estimado de todos que ninguém esperar podia vê-lo transformado a cometer tão feia acção como esta que ora fez»


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Drama de Sangue em Coimbra
Coimbra … de 137…
«Mal a Santarém chegaram notícias, confusas, de que, em Coimbra, se tinha dado uma horrível cena de sangue, da qual foram protagonistas pessoas da mais nobre linhagem, próximos parentes dos nossos reis, mandei aparelhar o alazão e parti, a toda a brida, para aqui. Queria informar com toda a verdade e miudamente os nossos leitores.
Passei em Alcanhões, onde está a Família Real, e logo tive confirmação da tragédia, por cujo motivo El-Rei e a Rainha se encontravam recolhidos, em rigoroso luto.
Ao cabo de três dias de viagem, cheguei a esta cidade. Achei-a ainda alvoroçada e, no rosto de muitas pessoas, gravada uma expressão de dor.
Indaguei por onde se ia até o lugar em que morava a desventurada D. Maria Teles e segui imediatamente para lá. Ladeei a couraça, deixei à minha mão esquerda a igreja de S. Bartolomeu, subi a calçada íngreme que contorna a muralha e, dentro em pouco, apeava-me junto às casas de Álvaro Fernandes Carvalho, onde vivia a irmã da Rainha D. Leonor. O sítio é, aprazível a mais não poder ser, pois o palácio, constituído por torres donde se desfruta um delicioso panorama sobre os campos do Mondego, tem à ilharga um risonho vergel de laranjeiras e outras árvores de fruto.
Disse ao que ia e preguntei quem melhor me poderia informar. Não tardou que um escudeiro me trouxesse ordem de subir, da parte de seu amo, Gonçalo Mendes Vasconcelos. Era parente de D. Maria e está a tomar conta da casa, aguardando ordens de Lopo Dias, seu filho dela. Num discurso, entrecortado de suspiros e ais, quis aquele senhor dar-me conta de todas as informações que pudera recolher, quer de alguns cavaleiros que acompanhavam o Infante, quer das mulheres que estavam com sua prima quando ela expirou.

Quem não sabe quanto estimado era na Corte o Infante João? Filho de El-Rei Pedro, que Deus haja em sua glória, e de D. Inez de Castro, que aquele monarca pretendeu fazer crer que fora sua mulher, teve uma infância desditosa por via de haver perdido tão cruamente a mãe; mas depois que o príncipe Pedro cingiu a coroa, por morte do Rei Afonso, o Infante João passou a viver na Corte, com todas as honras inerentes à sua gerarquia.
Belo de rosto e de corpo, como bastas vezes, leitor, o tereis visto, era igualmente exornado de requintadas qualidades de espírito. Amorável, galanteador, sabia muito bem receber em sua casa os fidalgos portugueses que o procuravam ou os que de alheio reino o vinham visitar. Tinha fama a sua generosidade, dava cavalos, armas, vestidos, dinheiro, aves e alãos a quem dele se aproximasse.
Foi sempre muito amigo de seu irmão João, Mestre de Aviz. Recomendara-lhes El-Rei, seu pai, que não se apartassem um do outro, e, de facto, tanto na corte como nas montarias e festas, andavam sempre juntos. Uma vez, em Évora, quando competia a ambos manter a távola numas grandes justas dirigidas pelo conde de Viana, o Infante João teve de recolher à cama, muito doente. Entretanto surgiu um conflito entre Vasco Porcalho, comendador-mor de Aviz, e Fernando Álvares Queiroz, que era da parte dos condes. Pois bastou constar-lhe que seu irmão, o Mestre, andava a cavalo, com um tração de pau na mão, a fim de defender Porcalho da fúria dos contrários, para que já ninguém fosse capaz de o reter no leito, de o impedir de ir ajudar o irmão na defesa do comendador-mor da sua ordem.
Não havia ninguém em toda a Espanha que melhor dominasse um cavalo, por mais braveza que tivesse; era grande justador e torneador e nunca esmorecia no exercício da caça, ao qual se entregava de verão e de inverno, por montes, vales, matas e levadas. Nem havia porco ou urso que lhe metesse medo. Podia contar aqui feitos que bem atestam a sua galhardia e coragem.
Mas o meu intento é somente recordar quem é o protagonista do drama de Coimbra: dotado de tais virtudes e tão estimado de todos que ninguém esperar podia vê-lo transformado a cometer tão feia acção como esta que ora fez.
Ela, a vítima, D. Maria Teles de Meneses, era irmã da rainha D. Leonor e de João Afonso, conde de Barcelos. Seus amores com o Infante João constituem um romance. Casada com Álvaro Dias Sousa, fidalgo de nobre estirpe, cedo enviuvou. Parece que o marido tinha relações com certa dama a quem o rei Pedro muito se afeiçoara; temendo a cólera do monarca, ausentou-se do Reino e lá por fora morreu, deixando a esposa, nova, mui formosa e atraente, rodeada de uma grande corte de donas, donzelas, camareiras, escudeiros, oficiais, etc., e de fidalgos, parentes ou não, que ela muito prezava segundo cada um merecia. Era abastada a sua casa, já pelos muitos bens que tinha herdado, já pela generosidade da rainha sua irmã, já porque a seu filho fora dado o mestrado de Cristo, cujas rendas a mãe administrava». In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

continua
Cortesia de Minerva/JDACT