Bolhas
de Amor
«Não
morreu. Fez uma pausa. Casou-se, o que ainda é pior. Célia desatou a rir, os
seus peitos nus estremeceram e teve um último gesto maternal. Pôs a mão entre
as minhas pernas, procurou-me com os dedos e fez-me uma carícia circular, desprovida
já de qualquer desejo, uma carícia agradecida e suave, como a lambidela fiel de
um animal. Aninhou-se depois no meu corpo, como era habitual, e ali ficou,
adormecida. Há muitos anos que não dormíamos nus. Primeiro intimidou-me o contacto
com o seu sexo, aberto e plácido, que se colou com um dulcíssimo ruído seco
sobre a minha nádega esquerda. Minutos antes, tínhamos feito amor tal como se
faz depois de vinte e cinco anos de casamento, ou seja, como se faz uma mala.
Célia estava um pouco bêbeda. Era a nossa primeira noite no barco, dançámos um
bolero e até chegou a sussurrar uma frase que me doeu mais do que alguma outra:
Por fim, sós. Pensei então em Elena, pensei
no sonho que tinha tido na mesma noite do seu casamento, e fechei os olhos.
Apertei Célia e ela empurrou a sua barriga contra a minha, encorajada pela
penumbra e pela atitude dos outros casais, mais ou menos da mesma idade, que
por sua vez se sentiam encorajados, observando-nos a nós. Lambeu-me depois a
orelha e repetiu novamente a frase. Por fim, estávamos sós, era certo. Depois
de vinte e três anos durante os quais Elena tinha sido o eixo das nossas vidas,
em Invernos e férias, Primaveras e aniversários. Elena a crescer, tornando-se
bonita, mais alta do que Célia, muito mais fina, infinitamente mais coquete. A
nossa filha Elena. Já por outras vezes tínhamos preferido viajar de barco. A
nossa menina acompanhou-nos quando navegámos pelo Golfo do México, um trajecto curto:
Tampa, Nova Orleães, a doce Campeche e, quando esteve prestes a celebrar o seu
décimo quinto aniversário, também esteve presente durante a travessia em que
subimos ao longo da costa da Califórnia, uma viagem fantástica que nos aproximou
rapidamente dos mares do Alasca. Mas desta feita tratava-se de um cruzeiro
muito mais ambicioso, o périplo das Caraíbas com que tínhamos sonhado durante
metade da nossa vida, alcançando ilhas distintas que ninguém tinha alcançado,
porque, afinal de contas... Quem, de todos os amigos, mesmo dos mais
aventureiros, tinha tomado banho nas baías
de Marie Calante? Isto sem contar com a breve escala em Antígua e o
final feliz da travessia, o momento culminante da viagem que teria lugar assim
que atracássemos em Martinica. Tentei libertar a minha nádega da carícia molhada
que era a vag… cálida de Célia. Agitou-se durante o sono e temi o pior. Mas não
acordou. Cobri-a com os lençóis e procurei o maço de cigarros às apalpadelas.
Bermúdez, que percebe tanto destas coisas, e que não é por acaso que já se
casou três vezes, advertiu-me antes de partir: as mulheres, nos barcos, parecem
perder a vergonha. É algo que não tem que ver com a idade nem com os anos de
convivência, não tem que ver com o excesso de peso nem com os netos. Tem que
ver, sim, com aquela claustrofobia irreparável que lhes sobe à cabeça assim que
o barco desatraca. Foi o próprio Bermúdez que me conseguiu os mapas e me
sugeriu as datas, uma vez que não era bom expor-se em tempo de vulcões, pois de Junho
a Novembro, disse, as Caraíbas são o diabo. O homem tem
a capacidade de se entusiasmar com as aventuras alheias, tem a delicadeza de
relaxar e, sobretudo, a grande vantagem de as viver. Talvez por isso seja tão
bom amigo. Um dia em que Célia me veio visitar ao escritório, falou-lhe
ironicamente do efeito vertiginoso que o mar provocava nos casais. O mar aberto, claro, sem contacto visual com
terra firme. Célia sorriu, estava demasiado atarefada com os preparativos
do casamento da nossa filha. Celita,
disse-lhe ele, saciando a sua mania pelos diminutivos, assim que sentires o aroma do marisco, ficarás uma leoa. Era outra
das teorias de Bermúdez os mares quentes, o mar das Antilhas sobretudo,
cheiravam a marisco estragado. E o
marisco estragado, já sabes, é cheiro de mulher. Elena casou-se em Março. O
noivo escolheu a data do seu próprio aniversário para se casar. E ela cedeu,
satisfeita. A sua mãe também, e eu também, destroçado por vê-la arrasar a sua
vida ao juntar-se para sempre a esse crápula que durante mais de dois anos
esteve a massacrá-la, impunemente, no banco traseiro do carro. Costumava
espiá-los de madrugada, escondido por detrás das persianas, quando ele a trazia
de volta a casa. Primeiro saía Elena, olhava para todos os lados, e num
instante metia-se de novo pela porta de trás». In Mayra Montero, La última noche
que pasé contigo, Barcelona, Tusquets Editora, 1991, A Última Noite que Passei Contigo, colecção
Pena de Galo, Editora Bico de Pena, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-621-054-0.
Cortesia
de Bico de Pena/JDACT