sábado, 1 de dezembro de 2012

Cartas a Ninguém, ilustração de Ingrid Martins. Lisa flores. «As cartas que vos deixo nasceram no silêncio de mim para ninguém. Um ninguém que o tempo queria que fosse diferente, que fosse pessoa. Pessoa que sentisse a magia das palavras e as fransformasse em flores. Num percurso do sonho, o tempo marcou encontro com a Natureza e fez brotar a essência da Vida»

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O meu coração é como um espelho
 - está nele o mundo inteiro reflectido.
Escrevo tal como vejo,
e parecerá acaso raro,
e mesmo louco,
pois penso em coisas bem estranhamente diversas.
Yoshida Kenko, 1283-1350

«Há tempos, cruzaram-se os meus caminhos com os de Lisa. Dotada de uma grande sensibilidade, é através da sua pintura "natif" que ela nos revela o seu extremo gosto pelo belo, por tudo quanto é puro e simples. E é com essa sua sensibilidade e esse seu gosto que eu me identifico. Tal como um poema haiku, a sua arte não tem fronteiras. Leio e releio as suas cartas com crescente admiração. Deslumbrada pela magia das suas palavras e pela fragrância das suas flores, aceitei colaborar neste livro.
Lisa Flores é uma escritora de linguagem poética e de miragens que nos mostra a Natureza na sua forma mais singular. Enquanto poetisa, é um ser receptivo ao permanente renascimento do mundo. Nas suas Cartas a Ninguém, Lisa vê o mundo com novos olhos, como se o contemplasse pela primeira vez, e toca o eterno. Revela-nos emoções fortes e simples, tanto do universo exterior como do universo mais íntimo da sua alma. Esta pintora-poetisa vive no coração da saudade, entregue aos anseios do seu Eu mais profundo.
Na sua caminhada poética, desvenda-nos, de forma renovada, a riqueza de pequenas maravilhas que se escondem numa simples pedra, numa árvore, numa nuvem, nas ondas do mar, no chilrear dos pássaros, na sombra dos malmequeres silvestres, verdadeiros paraísos onde o homem comum, esquecido do real valor da origem, só vê o valor representativo do interesse.

As flores são as mais bonitas
palavras e hieróglifos da Natureza.
Assim ela se insinua em nós
porque nos tem amor.
Coethe, 1749-1832

No Japão, as artes foram sempre entendidas como um caminho, Do, que abraça toda a espiritualidade de uma cultura. É um caminho para a perfeição, que, através da beleza, ajuda o homem a reencontrar as suas origens e os encantos primitivos da terra. Todo o caminho tem uma magia – Kado é o caminho das flores; Cha-do, a arte do chá; e Sho-do, a arte da caligrafia, ou a beleza na escrita da palavra.
Cada manifestação artística japonesa possui o seu próprio caminho. Um caminho vem de algum lugar e leva a algum lugar, mantendo um vínculo inquebrável entre passado, presente e futuro.
No Kado insere-se a minha arte, a Ikebana, que ocupa um lugar de destaque na vida japonesa. É assim que se designa a decoração floral, que data dos primórdios da civilização. As culturas mais antigas, como a egípcia, mostram-nos claramente que as flores sempre foram fonte de inspiração para adornos e outras expressões artísticas. A palavra ikebana resulta da fusão do antigo verbo "acordar", ikeru, e de bana, que significa "flor". Assim, ikebana é acordar as flores para a vida, é dar vida à beleza das flores que têm a valiosa função de ligar os corações dos homens.
Amamos as flores desde sempre. Há muito percebemos que elas não são apenas belas. As flores podem reflectir o passar do tempo e sentimentos humanos. A ikebana procura harmonizar as suas linhas, de elevado refinamento estético, com a Natureza que elas majestosamente representam. Podemos até comparar esta arte com a música:
  • uma simples sequência de notas forma uma bela melodia;
  • mas elas, notas, enquanto sons de vários instrumentos sincronizados, são capazes de dar origem a uma expressão muito mais rica do que uma melodia isolada».
In Lisa Flores, Cartas a Ninguém, ilustração de Ingrid B. Martins, colecção Outras Obras, Nova Vega, 2004, ISBN 972-699-785-2.

Na brisa da tarde
a gaivota voa
sobre o mar cintilante.
Paz.

Cortesia de Nova Vega/JDACT