«Os reinos não podem suportar tamanha despesa. E Ceuta, alongada de vossa
terra, só por água pode ter socorro. Não haveis de ter o vento a vosso mandado,
mas cuidai, que se pode seguir tal azo, que estando os navios em vossos reinos
três e quatro meses, e não haverem tempo de viagem, outras vezes podem perigar
no mar que é cousa comum, e que quase todos os dias acontece, ou os filharem
corsários e ladrões, como vedes que fazem cada dia. Pela grandeza da
cidade, precisareis de muita gente, de mantimentos, de dinheiro para os soldos
e as mercês. Ireis sobrecarregar o vosso povo? Muitos abandonarão o reino para
fugirem aos encargos. Quanto ao sacrifício divino não faltam igrejas na vossa
terra, e quase todas em ruína. Considerai também que se mantiverdes a cidade,
as mercadorias portuguesas terão muita dificuldade em atravessar o Estreito de
Gibraltar.
Os da tenção contrária sustentavam que o abandono seria uma vergonha
aos olhos dos estrangeiros. Então a nobreza antepõe as coisas proveitosas às
honrosas? Deus não quisesse que se tal desejo e vontade alojasse nas casas dos
príncipes e senhores. Para virdes matar uns poucos de mouros velhacos
pouco serviço faríeis a Deus. O vosso feito mais pareceria de corsário que de
rei. Em Ceuta poderão os fidalgos ociosos exercitar-se nas armas, em vez de irem
para França e Inglaterra. E com esta e outra gente que anda nos vossos paços
povoareis as muralhas da cidade.
Neste segundo grupo identificamos os homens da aristocracia urbana que
interpelavam os da primeira opinião, em boa parte fidalgos e gente que andava
nos paços régios. O rei João I convidou para governador da praça o guarda-mor
Martim Afonso Melo, que com ele estivera na Batalha Real. Recusou. Apoiado pelo
infante Duarte, ofereceu-se o conde Pedro Meneses, filho do conde de Viana, que
fora degolado em 1384 pelo vilão Caspirre. Regressara a Portugal por altura do Tratado
de Segóvia. João I confiou-lhe o governo da praça, que exerceu com
coragem e inteligência. Deixou-lhe trezentos vassalos, mais trezentos do
infante Duarte, que ficaram sob a liderança do conde, mais duzentos e cinquenta
do infante Pedro e trezentos do infante Henrique. Os vassalos dos dois infantes
tinham capitão próprio. A cidade de Lisboa deixava cem homens de armas, certamente
pagos à sua custa. Ao todo ficavam em Ceuta dois mil e setecentos homens, boa
parte de origem urbana, muitos deles acostados à casa do rei e dos infantes.
Ficavam também alguns estrangeiros e cavaleiros portugueses que andavam nas
guerras europeias, como João Pereira, homem do infante Henrique, ou Pero
Gonçalves, que diziam o Malafaia.
Em Tavira, no regresso, o rei João concedeu as primeiras mercês:
- para o infante Pedro criou o ducado de Coimbra;
- para o infante Henrique o ducado de Viseu, a que acrescentaria o senhorio da Covilhã.
À ida e à vinda, a peste mordeu a hoste expedicionária. Mas ninguém
voltava sem trazer um bocado de riqueza. As mulheres regozijavam-se com os
feitos dos maridos e com os proveitos alcançados. E expedicionários houve que,
na partida, deixaram os cereais guardados no celeiro e, na volta, chegaram a
tempo de colher as uvas.
Quem promove a conquista
A empresa de Ceuta mobilizara um país que vivera quase trinta anos em
guerra, quente e fria, contra Castela. No entanto, agora o fervor era tão grande no reino que em todos os lugares, as gentes
não falavam em al, principalmente nas cidades de Lisboa e do Porto. Por
toda a Ribeira de Lisboa, calafates e carpinteiros reparavam as naus e navios
enquanto os tanoeiros e outros homens e mulheres preparavam os mantimentos. Em
tempo calado, o ruído dos martelos era tão grande, no dizer da
Crónica, que se ouvia nos lugares do Ribatejo. O Porto armou à sua custa umas setenta
naus e barcas, fora outra fustalha, que não sabeis um só lugar na Hespanha de
que tão poderosa armada pudera sair.
Mobilizaram--se os fidalgos de quantia de todas as comarcas. No Norte e
na Beira o recrutamento coube ao infante Henrique e a seu irmão Afonso, conde
de Barcelos; na Estremadura e nas comarcas do Sul, ao infante Pedro. Os
combatentes do Norte reuniram-se no Porto e navegaram em armada própria para
Lisboa». In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal (1385
– 1500), Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-21-2464-5.
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