(continuação)
Ruínas. Margens. Passagens
Crónica 20 anos depois
«Nessas alturas tento imaginar o que teríamos, há 20 anos, pensado de
gente como a que hoje somos. E o que imagino, mas a minha imaginação sempre foi
coisa pouco recomendável, embaraça-me e apavora-me. Ter-nos-emos tornado em pessoas
tão feias e tão impertinentes como aquelas contra quem inventámos a vida e a
liberdade? Tenho a inquieta sensação de que, sem o saber, repetimos,
também nós, como os notários de Jacques Brel, um monótono papel num
drama não menos monótono. E que os nossos sonhos passados, como agora os nossos sonhos presentes,
tão óbvios, tão prováveis! E nós, as nossas derrotas, a nossa melancolia,
fazemos todos parte da mesma medíocre telenovela.
A verdade é que não me agrada absolutamente nada o argumentista destes últimos
anos, muito particularmente o da versão portuguesa deles. O happy
end liberal que entusiasticamente por aí se anuncia mais se me afigura
um terrível pesadelo de que, por muito que me esforce, não sou capaz de
acordar. A diminuição da inflação e das taxas de juro, o equilíbrio da
Balança de Pagamentos, a União Económica e Monetária, a televisão de alta definição,
não me parecem, de todo em todo, coisas por que valha a pena alguém viver ou
morrer, e não vejo nenhum épico na posse das faculdades mentais a dedicar uma
epopeia à presidência portuguesa das Comunidades ou aos feitos financeiro, do A.
C. S.. Foi este o tempo e o lugar sem grandeza que legámos aos filhos? Valeu a
pena tanta esperança para isto?
Olho os filhos e, pudessem eles compreender, dir-lhes-ia:
- "A culpa foi nossa”.
Talvez tenhamos feito o que pudemos, só que não pudemos, como se vê
pela figura junta, grande coisa. E agora não temos nada, ou quase nada, para
mostrar aos filhos. Nem o tamanho da nossa vida, que mediríamos pelo tamanho
dos nossos sonhos, e pelo das nossas derrotas, não tivéssemos todos debandado e
desertado para a nostalgia e para a ironia quando a vibrante bandeira da nossa
juventude caiu nas mãos dos infiéis». In Jornal de Notícias, 10 /6 / 92.
1988
Há 20 anos éramos esquerdistas, maoistas, trotskistas, guevaristas,
anarquistas; hoje somos todos neoliberais e post-modernos, enfim, quase
todos... De Gaulle disse que éramos la pègre, la chienlit; não fazíamos a barba, tínhamos longos cabelos, óculos
redondos, blue jeans sujos, camisas de flanela, sandálias, os mais radicais boina e saca maquisard
onde, à falta de carregadores e rações de combate, iam os livros da 10/18. Eram
os tempos heróicos do 2 cavalos, e do LSD, do punho fechado, das correrias à
frente da Polícia de Choque, do amor livre, do excesso e da poesia. Os
tempos, agora, vão mais para a prosa, para Megas Ferreiras & Vascos da
Graça Moura, para a monogamia e para os preservativos (por causa da SIDA).
E para os carros caros, as camisas de seda, as gravatas Balmain, os pubs,
a heroína. Os hippies tornaram-se yuppies e mudaram-se do Vavá para o João Sebastião Bar e do Piolho
para o bar do Sheraton; já não
celebramos a Marx, Marcuse e Mao, nem
aos seus profetas Cohn Bendit, Geismar,
Sauvageot, Rudi Vermelho Dutke, mas à Wall Street, à Reaganomics, ao sucesso e ao
dinheiro». In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento,
1994, ISBN 972-36-0323-3.
continua
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