domingo, 9 de dezembro de 2012

O Anacronista. Crónicas. Manuel António Pina. «… num drama não menos monótono. E que os nossos sonhos passados, como agora os nossos sonhos presentes, tão óbvios, tão prováveis! E nós, as nossas derrotas, a nossa melancolia, fazemos todos parte da mesma medíocre telenovela»

jdact

(continuação)
Ruínas. Margens. Passagens
Crónica 20 anos depois
«Nessas alturas tento imaginar o que teríamos, há 20 anos, pensado de gente como a que hoje somos. E o que imagino, mas a minha imaginação sempre foi coisa pouco recomendável, embaraça-me e apavora-me. Ter-nos-emos tornado em pessoas tão feias e tão impertinentes como aquelas contra quem inventámos a vida e a liberdade? Tenho a inquieta sensação de que, sem o saber, repetimos, também nós, como os notários de Jacques Brel, um monótono papel num drama não menos monótono. E que os nossos sonhos passados, como agora os nossos sonhos presentes, tão óbvios, tão prováveis! E nós, as nossas derrotas, a nossa melancolia, fazemos todos parte da mesma medíocre telenovela.


A verdade é que não me agrada absolutamente nada o argumentista destes últimos anos, muito particularmente o da versão portuguesa deles. O happy end liberal que entusiasticamente por aí se anuncia mais se me afigura um terrível pesadelo de que, por muito que me esforce, não sou capaz de acordar. A diminuição da inflação e das taxas de juro, o equilíbrio da Balança de Pagamentos, a União Económica e Monetária, a televisão de alta definição, não me parecem, de todo em todo, coisas por que valha a pena alguém viver ou morrer, e não vejo nenhum épico na posse das faculdades mentais a dedicar uma epopeia à presidência portuguesa das Comunidades ou aos feitos financeiro, do A. C. S.. Foi este o tempo e o lugar sem grandeza que legámos aos filhos? Valeu a pena tanta esperança para isto?

Olho os filhos e, pudessem eles compreender, dir-lhes-ia:
  • "A culpa foi nossa”.
Talvez tenhamos feito o que pudemos, só que não pudemos, como se vê pela figura junta, grande coisa. E agora não temos nada, ou quase nada, para mostrar aos filhos. Nem o tamanho da nossa vida, que mediríamos pelo tamanho dos nossos sonhos, e pelo das nossas derrotas, não tivéssemos todos debandado e desertado para a nostalgia e para a ironia quando a vibrante bandeira da nossa juventude caiu nas mãos dos infiéis». In Jornal de Notícias, 10 /6 / 92.


1988
Há 20 anos éramos esquerdistas, maoistas, trotskistas, guevaristas, anarquistas; hoje somos todos neoliberais e post-modernos, enfim, quase todos... De Gaulle disse que éramos la pègre, la chienlit; não fazíamos a barba, tínhamos longos cabelos, óculos redondos, blue jeans sujos, camisas de flanela, sandálias, os mais radicais boina e saca maquisard onde, à falta de carregadores e rações de combate, iam os livros da 10/18. Eram os tempos heróicos do 2 cavalos, e do LSD, do punho fechado, das correrias à frente da Polícia de Choque, do amor livre, do excesso e da poesia. Os tempos, agora, vão mais para a prosa, para Megas Ferreiras & Vascos da Graça Moura, para a monogamia e para os preservativos (por causa da SIDA).
E para os carros caros, as camisas de seda, as gravatas Balmain, os pubs, a heroína. Os hippies tornaram-se yuppies e mudaram-se do Vavá para o João Sebastião Bar e do Piolho para o bar do Sheraton; já não celebramos a Marx, Marcuse e Mao, nem aos seus profetas Cohn Bendit, Geismar, Sauvageot, Rudi Vermelho Dutke, mas à Wall Street, à Reaganomics, ao sucesso e ao dinheiro». In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento, 1994, ISBN 972-36-0323-3.

continua
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT