Sepulcro dos dias
Eu sei que tu me esperas pela boca do dia
redondo sobre ti como um desejo
e que quando toda a paisagem for vã
hás-de proteger-me com tua chuva de linhas.
E no entanto paramentado com ideias de circunstância
talvez eu me olhe em outros espelhos e admita
conceitos arejados como tapetes esquecido
de que tu continuas a subir do sepulcro dos meus dias
como o primeiro orvalho que a donzela
contente por ter a possibilidade de ser vista de fora
recebe na cara ao abrir a janela.
Mas se amanhã me olhares o teu olhar levantará
nuvens de séculos sobre o meu caminho de pó.
As folhas são pelo menos tão naturais como as palavras
e a radical árvore onde te imolaram tinha sido
embora trabalhada vegetal e verde.
Coisas gloriosas se têm dito de ti
árvore mais verde de quantas há não há na vida
praia prometida no fundo dos mais belos
dos menos intencionais dos mais
inexplorados olhos.
E só para ti senhor não haver
lugar na cidade nem mãos com que te ungir.
Servissem-te ao menos meus dias de espaço
não tenho nada já para morrer
abrir-te os braços é tudo o que faço.
Passaste numa nuvem pelos costumados gestos
qual onda que recua roubaste-mos ao dia
aí teve princípio toda a salvação.
Havia-me colinas prometidas
e lagos redondos como a minha sede de cervo.
Mas reduzi-me à tua irregular geografia
ó foz deste rio irrequieto.
Não há nenhuma outra paisagem
mais do que a tua cruz simplificada.
Povoamento
No teu amor por mim há uma rua que começa.
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas.
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera.
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem.
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera.
Poemas de Ruy Belo, in ‘Obra Poética’
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