segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O Confronto do Olhar. O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha. «O próprio João de Barros, “Ásia, Décadas”, faz o elogio da civilização chinesa, afirmando que a sua grande sabedoria fez com que não ousasse uma expansão planetária, porque a sociedade é tanto mais fraca quanto mais longe estiver do seu espaço»


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«E eles quando vieram e acharam assim aquelas cousas, britaram o bôlo e lançaram-no a longe, e com as azagaias tiraram ao espelho, até que o britaram em muitas peças, e romperam o papel, mostrando que de nenhuma destas cousas não curavam. - Pois que assim é, - disse Gomes Pires contra os bésteiros - tirai-lhe ás bestas, sequer que conheçam que somos gente que lhe poderemos fazer dano, quando por bem comnosco não quiserem convir.

Mas os Guineus, vendo a tenção dos outros, começaram de lhe enviar o retorno, tirando-lhe isso mesmo ás frechas e ás azagaias, das quaes trouveram algumas a este reino. E são as frechas assim feitas, que não teem penas nem mossa para entrar a corda, somente a moiz toda uma; e são curtas e de boinhos ou de caniço, e os ferros que teem são longos, e deles são de pau encastoados nas astas, que querem semelhar fusos de ferro com que fiam as mulheres em esta terra, e tem isso mesmo outros harpões pequenos de ferro, as quaes frechas todas igualmente são empeçonhadas com herva. E as azagaias são de sete ou oito garfos de harpões cada azagaia’.

Dali seguiram mais avante algum espaço, até que acharam um rio, no qual fizeram entrada com o batel; e em umas casas que ali acharam filharam uma mulher; e depois que a tiveram na caravela, tornaram outra vez ao rio, com intenção de subirem mais avante, para trabalharem de fazer alguma boa presa.

E indo assim seguindo sua viagem, vieram sobre eles quatro ou cinco barcos de Guineus, corregidos como homens que queriam defender sua terra, cuja peleja os do batel não quiseram experimentar, vendo a grande vantagem que os contrairos tinham, temendo sobre tudo o grande perigo que havia na peçonha com que tiravam. E começaram de se recolher o- melhor que puderam para seu navio; mas vendo como um daqueles barcos se adiantava muito, voltaram sobre ele, o qual tornando para os outros, querendo os nossos chegar a ele antes que se acolhesse, porque parecia que era já afastado boa parte de companhia, chegou-se o batel tanto que um daqueles Guineus fez um tiro contra ele, e acertou-se de dar com a frecha a Álvaro Fernandes per a perna; mas porque ele já era avisado de sua peçonha, tirou aquela frecha muito asinha e fez lavar a chaga com urina e azeite, d’aí untou-a muito bem com teriaga, e prouve a Deus que lhe aproveitou, como quer que sua saúde passasse por grande trabalho, que certos dias esteve em passo de morte.
Os outros da caravela, ainda que seu capitão assim vissem ferido, não leixaram porem de seguir avante por aquela costa, até que chegaram a uma ponta de areia, que se fazia em direito [...]

Mas, quando damos um salto geográfico, verificamos que uma das coisas que impressionaram os portugueses na China foi a tipografia, Jerónimo Osório, Tratado de Glória, chamando-lhe o reino da polícia, por excelência. O progresso na China faz-se por justiça, por exames, por estudos, não por aderências, cunhas, e favores da Corte, João de Barros pensa a diferença de uma forma crítica em relação a Portugal. F. M. Pinto relata-nos esse olhar crítico através de um ancião e de uma criança chinesa que fazem o discurso da denúncia, realçando que o encontro dos portugueses com os asiáticos se faz sob o signo da religião, com Deus na boca, e os actos contrários a esse Deus.
O próprio João de Barros, Ásia, Décadas, faz o elogio da civilização chinesa, afirmando que a sua grande sabedoria fez com que não ousasse uma expansão planetária, porque a sociedade é tanto mais fraca quanto mais longe estiver do seu espaço. Sabe-se que os chineses navegaram também num movimento inverso ao dos portugueses, tendo chegado a Quiloa / Moçambique. Garcia de Orta, nos seus Colóquios, dá-nos notícia das viagens dos juncos chineses até ao golfo Pérsico (INCM, Lisboa, 1987). Segundo alguns historiadores, os chineses teriam mesmo dobrado o cabo da Boa Esperança, mas os seus velhos do Restelo venceram o de Camões...
O encontro através do Índico, com o mundo asiático, efectuou-se como símbolo de um percurso ou de uma metamorfose de relações, a da visualização cinematográfica que a arte japonesa representou, a arte Nambam, inspirada nos hábitos e costumes daqueles bárbaros do sul, namban ji, que aportaram ao Japão em barcaças como nunca se tinham visto, trajando de modo singular, mas possuidores de armas poderosas. Tanegaxima, terra a que Fernão Mendes Pinto, o Diogo Zeimoto?) aportou em 1544-1545 chegando à ilha da raiz do sol, Japão. Espantou o chefe local, dáimio, com o poder das suas espingardas, de que lhe foram oferecidas duas, passando a ser o fabricante de tanegaximas (= espingardas).
A arte Nambam, que através da sua leitura icónica distingue as hierarquias e as funções pelo vestuário e pelo modo como se organiza o cortejo da saída da nau dos navegadores portugueses que desembarcaram em Nagasáqui e noutros portos japoneses». continua
In António Luís Ferronha, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.

Cortesia de Caminho/JDACT