domingo, 1 de dezembro de 2013

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «Não gasta o sabão importado da Europa, porque conhece o uso das folhas de ‘saboeira’, condimenta o caril com as folhas da ‘árvore do caril’, conhece a célebre ‘raiz de João Lopes’ como o melhor tónico; anda quase sempre munido de um pedaço de ‘pau-de-cobra’…»

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Goa
«(…) Não sucede já o mesmo em Salcete, se excluirmos os brâmanes, classe abastada e inteligente, e a cujos principais membros cabe um lugar singular nesta história. Com o poder de uma inteligência mais casuística que sólida, guiados por uma constante ideia, têm eles podido, apesar da sua inferioridade numérica, impor-se aos seus conterrâneos e ainda à metrópole, onde eles disputam lugares aos europeus nos variados ramos da actividade social. A singular apatia e desmoralização dos habitantes de Salcete têm a sua explicação no facto de estarem expostos às incursões do ramo dravídico e nas constantes perseguições religiosas, que acabaram por os tornar tímidos e desconfiados. Onde, porém, a raça se conserva mais pura é exactamente onde o catolicismo e a civilização europeia pouco imperaram. Ainda que semi-selvagens, possuem um fundo moral e religioso superior aos conversos. As Novas Conquistas, virgens em natureza e civilização, são mais domínios independentes, feudatários, que nossos. Vivendo em uma região acidentada, em campos encastelados por altas serranias, cortada de profundos vales, encristada de imponentes despenhadeiros, sombreada por densas metas, regada de esteiros de água que inundam seus formosos arecais, acordada pelo fragoso despenhar das cascatas, pelo rugir do tigre e dos uivos do chacal, os seus habitantes conservam com ciúme os seus hábitos tradicionais. Em rudes govoles, o gouly, pastoril e nómada, como que embalado pelo mugir do seu rebanho, a sua única riqueza, sem ambições, mas feliz à sombra do sumptuoso docel da árvore gralha.
Quase sempre em frente do pobre casebre, mesmo no centro do anganam, mão religiosa cultiva o pimpol entre cujos ramos nasceu Vishnu. O habitante do território das Novas Conquistas é um exímio conhecedor de plantas úteis e medicinais. Muitas vezes desce ele às vilas como curandeiro ou garopeiro e então vende mezinhas ou diverte as turbas. Não gasta o sabão importado da Europa, porque conhece o uso das folhas de saboeira, condimenta o caril com as folhas da árvore do caril, conhece a célebre raiz de João Lopes como o melhor tónico; anda quase sempre munido de um pedaço de pau-de-cobra, enfim, é um digno precursor se não mestre de Garcia da Orta. Com efeito, a Natureza aí é de prodigiosa exuberância, e o hindu nutre não sei que amor santo pelas plantas. Ao lado das medicinais brotam aí a champaca, dedicada a Vishnu, e cujas flores são muito apreciadas pelas gentias, como ornato de cabeça; o jasmineiro, o mogarim, e a linda trepadeira clitorea ternatea. A prodigalidade do reino vegetal corresponde à do reino animal. Ao romper da alva lindos pássaros saúdam o astro benfazejo, espalhando pela ramaria a música alegre dos seus trinos. Mal douram o horizonte os primeiros raios do sol, e o orvalho cai, gota a gota, no solo alastrado de odoríferas flores, saltitam de ramo em ramo o pássaro-do-sol, o bulbul sultana, o papagaio-de-cabeça-azul, o engole-vento, o gaivão-dos-palmares, o pássaro-alfaiate, o mainato-religioso e uma infinidade de aves, qual delas a mais rica na plumagem e mais festeira no gorjeio vibrátil, modulado, ligeiro como o acordar do dia oriental.

Debaixo de um céu rubro; o gouly descalço e a cabeça descoberta, como um herói, pastoreia por vastas campinas o seu rebanho. Fatigado pelo calor, deita-se sobre a fresca relva, e erguendo as pernas em posição vertical brinca com os pés ao som da flauta pastoril. Vem descendo pela encosta uma manada de búfalos. Sobre o dorso, de rosto para trás, sentam-se os pastores com as pernas cruzadas, como ídolos levados em charolas; outros deitam-se de barriga para o ar e soltam gritos estrídulos em sinal de recolher aos seus companheiros. Nas aldeolas esperam-nos as goulinas, raparigas fortes e esbeltas, com os seus grandes brincos pendentes da orelha e o colo cheio de contas e missangas, como os seus ídolos. Enquanto os pastores tiram do langotim e repartem entre si os carandams e churnams que colheram no mato, a família prende o gado às estacadas e junta a bosta com que se asseia o chão da casa e o canteiro do sagrado pimpol. Muitas vezes estes hebreus indianos formados em tribo desarmam a choça, fazem em feixe os bambus, as mulheres atam os filhinhos por detrás das costas, e lá vão carregando a casa toda por esses íngremes trilhos escolher outro sítio mais cómodo. Mas não é só o gouly, pacífico e pensativo, vindo às vilas vender o lounim, que habita essas regiões, sobre as quais a nossa influência tem sido nula. Novas Conquistas, para os imaginosos, é um ninho de salteadores. De tempos a tempos, fortes quadrilhas de salteadores têm trazido em constante sobressalto os povos de Goa. Os salteadores das Novas Conquistas, porém, não são, como se se supõe, uns celerados por índole ou profissão. A maior parte das vezes não é só a fome ou o espírito de aventura, que lhes arma os braços. Há no fundo dessa vida semibárbara profundos dramas humanos». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT