«(…) Ainda assim, nunca ocorreu a ninguém reconhecer aos filhos
ilegítimos dos reis de Portugal o direito de suceder ao trono dos seus pais. E
a Carta Constitucional, outorgada em 1826 pelo maior criador de bastardos reais (e imperiais) da
história pátria, excluía-os expressamente da sucessão. Publicam-se os nomes e a
breve história dos bastardos reais portugueses, ou seja, dos filhos ilegítimos
dos reis de Portugal. Mas entendeu-se que se justificava abrir uma excepção: a
do Prior do Crato, filho
ilegítimo do infante Luís e neto do rei Manuel I, por força do papel que
desempenhou na época em que viveu e, sobretudo, na sucessão do cardeal-rei, seu
tio. Para muitos historiadores, ele deve, aliás, ser
considerado rei de Portugal. É a primeira vez que os bastardos régios
aparecem reunidos num livro.
Os Bastardos de Borgonha
Filho de uma bastarda real, D. Teresa, que o rei Afonso VI de
Castela e Leão houve de Ximena Nuñez Guzmán, sua amante, Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal,
poderia ter sido, também ele, um bastardo. Ou, pelo menos, não seria filho de seu pai, o conde Henrique de Borgonha. Agustina
Bessa-Luís assevera que as deduções
em volta deste boato são bastante significativas, pondo de parte favores dos santos e dos cronistas. Mas o boato
sobre a mais que improvável bastardia
do primeiro rei de Portugal surgiu exactamente para rebater os favores que o
céu terá derramado sobre ele e que fazem parte de uma lenda antiquíssima,
publicada como verdadeira história por Duarte Galvão na sua Crónica
do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe D. Afonso
Henriques.
Diz o cronista que o primeiro rei nasceu grande e formoso, que não podia mais ser, padecendo, porém,
de grave defeito: umas pernas tão
encolheitas que, ao parecer de mestres e de todos, julgarom que nunca poderia
ser são delas. Não era essa, no entanto, a convicção de Egas Moniz, mui esforçado e nobre fidalgo, a
quem o menino foi entregue para ele o criar. O aio de Afonso Henriques confiava em Deus
que lhe podia dar saúde. Ora, uma noite em que Egas Moniz dormia,
apareceu-lhe a Virgem Maria e disse-lhe para ir a determinado local escavar até
encontrar uma igreja que, noutro tempo, tinha sido começada em seu nome. Devia correger o templo, recuperando também
uma imagem de Nossa Senhora que lá existia. Cumpridas essas tarefas, Egas
Moniz havia de fazer uma vigília, poendo
o menino que [criava] sobre o altar. Cristo, explicou Sua mãe, queria por
Afonso Henriques destruir muitos
imigos da fé. O aio, muito consolado
e alegre, correu a cumprir os ditames da Mãe do Céu. E quando, finalmente,
pôde colocar Afonso Henriques sobre o altar, o menino ficou como se nada tivera. Este foi o milagre de Santa Maria
de Cárquere, que levantou
suspeitas a muito boa gente.
Por um lado, não falta quem duvide da malformação congénita do rei
Fundador, descoberta por Duarte
Galvão no ano de 1505, quase
quatrocentos anos depois do nascimento do príncipe. Por outro lado, há quem
torça o nariz ao milagre. Agustina Bessa-Luís, por exemplo, escreve:
Dá para pensar que Egas Moniz o fez substituir por um dos seus próprios
filhos ou filho dalgum rico-homem de pendão e caldeira, como se dizia [...].
Esta troca do verdadeiro filho do conde Henrique por outra criança
qualquer, filha ou não de Egas Moniz, parece ter sido inventada por Santana
Dionísio, um professor de filosofia, que a publicou num artigo de jornal,
em 1969. Segundo ele, o príncipe
aleijado teria sido substituído por uma criança robusta, ficando Egas Moniz
a cuidar do enfermo enquanto Henrique e D. Teresa passavam a ter um filho em
perfeitas condições de lhes suceder na governança do Condado Portucalense.
A história, à semelhança do enfermiço infante da lenda, não tem pernas para
andar. Por mais hábil e secreta que tivesse sido a troca das crianças, Henrique
tinha outros filhos, legítimos e bastardos, para além de uma mão-cheia de netos,
e não é de crer que estes seus descendentes aceitassem sem protesto e sem luta
que a sucessão do Condado Portucalense fosse deferida a quem não fizesse
seguramente parte da família de seu pai. Ora, se é sabido que Afonso Henriques teve de combater a mãe
para ficar com a herança do pai, não há nenhuma notícia de que tivesse de
enfrentar outro qualquer membro da sua numerosa família, o que por força teria
de suceder se houvesse outros descendentes do conde Henrique com melhores títulos
do que ele para reivindicar a posse do Condado de Portucale.
Resta, por isso, a hipótese da cura milagrosa, que só faz sentido, no
entanto, desde que se aceite ter o primeiro rei de Portugal nascido com as
pernas encolhidas. Ora, essa hipótese, nunca provada, suscita entre os melhores
historiadores muitas dúvidas e reservas. Alguns há, aliás, que não perdem um minuto
a examiná-la. Não parece por isso prudente e, mais do que prudente, sensato,
falar de um Afonso Henriques bastardo
ou miraculado». In Isabel Lencastre, Bastardos Reais, Os
Filhos Ilegítimos dos Reis de Portugal, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-989-555-845-2.
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