«(…) - Quem me dera acudir-lhe. Pois se El-Rei tiver a sífilis, que é
meu cuidado, logo irei ao paço. Agora por coisas de caca... - Deus nos defenda!
- Dizem que o judeu Zacuto, agora cristão-novo, sabe curar maleitas de maus
cheiros e ventanias de tripa... - Prefiro benzer eu El-Rei a deixar esse
maldito tornar a tocar em o nosso soberano! - Pois Zacuto já esteve no paço?
E viu El-Rei? - Se viu?! Pois de onde pensais ter
ido o Rei buscar tanta merdan…?
Tamanha caganeira foi obra desse maldito judeu, que uma boa pira de lenha a
arder poria em bom termo... Na tarde em que esse Zacuto visitou El-Rei nem se
podia andar perto da câmara real. O fedor, Deus, o fedor derrubava anjos do
céu... Perdoe-me Deus, ámen...
Uma mulher de longas vestes e capuz pela cabeça espreitou-os,
desaparecendo a seguir numa curva do corredor. - E esta, quem é? - perguntou de mau humor o cardeal. - Maria
das Dores, senhor. -E o que faz?
Pois não sabeis, se é tão comentada?
Foi o arcebispo quem na licenciou. Licenciou?
E para que artimanhas? Para
curar com o sinal da Cruz e com várias ervas, sendo-lhe porém proibido benzer
com ourelos. Percebe muito de alporcas, de boubas e de chagas velhas. -Terá feito bem, o arcebispo? -
perguntou o cardeal ao recordar-se do que assistira na sua recente viagem.
- Certamente. - E há, como
esta, mais mulheres a curar? - O próprio rei concedeu licença a uma
outra, para curar onde não haja físico. Mas essa não pára aqui, que há muito
por fazer neste reino.
- Se essa outra perceber alguma
coisa de tripa solta e de varizes, de cheiros penosos e de inchaços com icores,
que largue todos os casos que tenha e que corra ao paço. Dito isto, o cardeal
abençoou Ysla e foi até à recepção dos doentes para assisti-los a confessar os
seus pecados e para dar-lhes os sacramentos, coisas sem as quais estavam
proibidos de passar à enfermaria e ao internamento. Ao descer as escadas para a
capela avistou uma mulher enorme, de rudes faces, pêlos enormes no buço e na
queixada, mãos de cordoeiro velho. - Quem
é? perguntou, a um enfermeiro, o cardeal. - A cristaleira -
respondeu-lhe este. O cardeal sentiu uma volta inquieta nas entranhas.
Tinha El-Rei uma colecção de frasquinhos de veneno que admirava com
grande prazer de quando em onde e que lhe dava algum conforto às suas
penitências e achaques de corpo e espírito. Contemplava os seus venenos e
suspirava: - Sou um venturoso!
Naquela manhã, acordoe com essa vontade de rever os frascos e escolheu
um deles depois de a todos admirar e readmirar com infinita ternura e demora. –
Se eliminas reis bem podes despachar um cão ingrato, sussurrou ao frasquinho.
Explique-se: El-rei andava agastado com um cristão-novo, judeu habilitadíssimo na
arte de remolar que, há longos meses, prometia acabar umas boas dúzias de remos
sem o cumprir, refugiando-se em ardis de mil mentiras e outras tantas trapaças.
El-rei queria visitá-lo e presenteá-lo… com o conteúdo fatal do frasquinho de
veneno.
Mas embora não o entendesse em seus detalhes mais detalhados, el-rei
era um apreciador do progresso. Ouvia, memorava e falava do que não sabia com
grande espavento, e quem o escutava cuidaria saber ele o que dizia. Quantas vezes
a gabarolice punha-o a recitar conhecimentos alheios: - Sim, pois sim, irra! Conhecemos bem as agulhas de
marear, e, dentre os instrumentos de navegação, ninguém nos bate em domínios de
balestilha, astrolábio e quadrante». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo
de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
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