sábado, 4 de janeiro de 2014

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Sim, pois sim, “irra!” Conhecemos bem as agulhas de marear, e, dentre os instrumentos de navegação, ninguém nos bate em domínios de balestilha, astrolábio e quadrante»

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«(…) - Quem me dera acudir-lhe. Pois se El-Rei tiver a sífilis, que é meu cuidado, logo irei ao paço. Agora por coisas de caca... - Deus nos defenda! - Dizem que o judeu Zacuto, agora cristão-novo, sabe curar maleitas de maus cheiros e ventanias de tripa... - Prefiro benzer eu El-Rei a deixar esse maldito tornar a tocar em o nosso soberano! - Pois Zacuto já esteve no paço? E viu El-Rei? - Se viu?! Pois de onde pensais ter ido o Rei buscar tanta merdan…? Tamanha caganeira foi obra desse maldito judeu, que uma boa pira de lenha a arder poria em bom termo... Na tarde em que esse Zacuto visitou El-Rei nem se podia andar perto da câmara real. O fedor, Deus, o fedor derrubava anjos do céu... Perdoe-me Deus, ámen...
Uma mulher de longas vestes e capuz pela cabeça espreitou-os, desaparecendo a seguir numa curva do corredor. - E esta, quem é? - perguntou de mau humor o cardeal. - Maria das Dores, senhor. -E o que faz? Pois não sabeis, se é tão comentada? Foi o arcebispo quem na licenciou. Licenciou? E para que artimanhas? Para curar com o sinal da Cruz e com várias ervas, sendo-lhe porém proibido benzer com ourelos. Percebe muito de alporcas, de boubas e de chagas velhas. -Terá feito bem, o arcebispo? - perguntou o cardeal ao recordar-se do que assistira na sua recente viagem.
- Certamente. - E há, como esta, mais mulheres a curar? - O próprio rei concedeu licença a uma outra, para curar onde não haja físico. Mas essa não pára aqui, que há muito por fazer neste reino.
 - Se essa outra perceber alguma coisa de tripa solta e de varizes, de cheiros penosos e de inchaços com icores, que largue todos os casos que tenha e que corra ao paço. Dito isto, o cardeal abençoou Ysla e foi até à recepção dos doentes para assisti-los a confessar os seus pecados e para dar-lhes os sacramentos, coisas sem as quais estavam proibidos de passar à enfermaria e ao internamento. Ao descer as escadas para a capela avistou uma mulher enorme, de rudes faces, pêlos enormes no buço e na queixada, mãos de cordoeiro velho. - Quem é? perguntou, a um enfermeiro, o cardeal. - A cristaleira - respondeu-lhe este. O cardeal sentiu uma volta inquieta nas entranhas.

Tinha El-Rei uma colecção de frasquinhos de veneno que admirava com grande prazer de quando em onde e que lhe dava algum conforto às suas penitências e achaques de corpo e espírito. Contemplava os seus venenos e suspirava: - Sou um venturoso!
Naquela manhã, acordoe com essa vontade de rever os frascos e escolheu um deles depois de a todos admirar e readmirar com infinita ternura e demora. – Se eliminas reis bem podes despachar um cão ingrato, sussurrou ao frasquinho. Explique-se: El-rei andava agastado com um cristão-novo, judeu habilitadíssimo na arte de remolar que, há longos meses, prometia acabar umas boas dúzias de remos sem o cumprir, refugiando-se em ardis de mil mentiras e outras tantas trapaças. El-rei queria visitá-lo e presenteá-lo… com o conteúdo fatal do frasquinho de veneno.
Mas embora não o entendesse em seus detalhes mais detalhados, el-rei era um apreciador do progresso. Ouvia, memorava e falava do que não sabia com grande espavento, e quem o escutava cuidaria saber ele o que dizia. Quantas vezes a gabarolice punha-o a recitar conhecimentos alheios: - Sim, pois sim, irra! Conhecemos bem as agulhas de marear, e, dentre os instrumentos de navegação, ninguém nos bate em domínios de balestilha, astrolábio e quadrante». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT