Ler para Viver. In Flaubert
A Última Página
«(…) A experiência das coisas tive-a em primeiro lugar através dos
livros. Quando, mais tarde, me deparei com um acontecimento, circunstância ou personagem
semelhantes àqueles sobre os quais tinha lido, o resultado era normalmente uma
sensação algo perturbante mas desencantada de déjà vu, pois imaginava que o que se estava a passar nesse momento
já me tinha acontecido em palavras, já tinha sido nomeado. O texto hebraico de
pensamento sistemático e especulativo mais antigo que se conhece, o Sefer Yezirah, escrito no século VI,
explica que Deus criou o mundo através de trinta e dois caminhos de sabedoria
secretos, dez Sefirot, ou números, e
vinte e duas letras. A partir dos Sefirot
foram criadas todas as coisas abstractas; com as vinte e duas letras criaram-se
todos os seres reais nos três estratos do cosmo, o mundo, o tempo e o corpo
humano. O universo, na tradição judaico-cristã, é concebido como um Livro
escrito, feito de números e letras; a chave para compreender o universo reside
na nossa capacidade para ler estes números e letras adequadamente e conseguir o
domínio das suas combinações, aprendendo assim a dar forma a alguma parte desse
texto colossal, numa imitação do nosso Criador. (Segundo uma lenda do século
IV, os eruditos talmúdicos Hanani e Hoshaiah estudavam o Sefer Yezirah uma vez por semana e, através da combinação acertada
das letras, criavam um vitelo de três anos, que comiam ao jantar.) Os meus
livros eram para mim transcrições ou glosas daquele outro Livro
colossal. Num soneto, Miguel de Unamunos fala do Tempo, cuja fonte está no
futuro; a minha vida de leitor dava-me essa mesma impressão de ir contra a corrente,
de viver o que já tinha lido. A rua lá fora estava cheia de homens maus
empenhados nos seus negócios escuros. O deserto, que não distava da nossa casa
em Telavive, onde vivi até aos seis anos, era um prodígio, porque eu sabia que
havia uma Cidade de Bronze enterrada debaixo da areia, do lado de lá da rua
asfaltada. A gelatina era uma substância misteriosa que eu nunca tinha visto,
mas que conhecia dos livros de Enid Blyton, e que nunca chegou a alcançar,
quando finalmente a provei, a qualidade daquela ambrósia literária. Escrevi à
minha avó, que vivia muito longe, a queixar-me de um problema sem importância,
pensando que ela seria a fonte da mesma liberdade magnífica que os meus órfãos
literários encontravam quando descobriam parentes há muito perdidos; em vez de
me resgatar, ela enviou a carta aos meus pais, que acharam os meus queixumes vagamente
divertidos. Eu acreditava em bruxaria e tinha a certeza de que um dia me seriam
concedidos três desejos que inúmeras histórias me tinham ensinado a não
desperdiçar. Preparei-me para encontros com fantasmas, com a morte, com animais
falantes, com batalhas; fiz planos complicados para viajar para ilhas de
aventura, nas quais Sinbad se tornaria meu amigo íntimo. Só quando, anos
mais tarde, toquei pela primeira vez o corpo da pessoa amada é que me apercebi
de que a literatura pode por vezes ficar aquém do acontecimento.
O ensaísta canadiano Stan Persky disse-me uma vez que para os leitores, deve haver um milhão de
autobiografias, visto que se nos afigura encontrarmos, em cada livro,
vestígios das nossas vidas. Anotar as
impressões da leitura de Hamlet, ano após ano, escreveu Virginia Woolf,
seria praticamente registar a nossa
própria autobiografia, pois, à medida que ficamos a saber mais sobre a vida,
Shakespeare vai comentando o que aprendemos. Para mim, era algo
diferente. Se os livros eram autobiografias, eram-no antes do acontecimento, e
eu reconhecia situações posteriores no que tinha lido em H. G. Wells, em Alice no País das Maravilhas, no lacrimoso
Cuore de Edmondo De Amicis, nas
aventuras de Bomba, o Menino da Selva.
Sartre, nas suas memórias, confessa ter tido uma experiência semelhante.
Comparando a flora e a fauna descobertas nas páginas da Enciclopédia Larousse com as suas correspondentes nos
Jardins do Luxemburgo, descobriu que os
macacos no jardim zoológico eram menos macacos, as pessoas nos Jardins do
Luxemburgo menos pessoas. A semelhança de Platão, passei do conhecimento ao seu
objecto. Encontrei mais realidade na ideia do que na coisa, porque aquela me
tinha sido dada primeiro e como coisa. Foi em livros que encontrei o universo:
resumido, classificado, rotulado, meditado, ainda cheio de força.
Ler forneceu-me uma desculpa para a privacidade ou talvez tenha dado um
sentido à privacidade que me era imposta, visto que, durante toda a minha
infância, depois de termos regressado à Argentina em 1955, vivi à parte do resto da minha família, a cargo da minha ama
numa outra zona da casa. Nessa altura, o meu lugar de leitura preferido era o
chão do meu quarto, deitado de bruços e com os pés enganchados numa cadeira.
Mais tarde, a minha cama, pela noite dentro, tornou-se o lugar mais seguro e
mais isolado para ler naquela região nebulosa entre a vigília e o sono. Não me recordo
de alguma vez me ter sentido só; de facto, nas raras ocasiões em que me
encontrava com outras crianças, achava as suas brincadeiras e conversas bem menos
interessantes do que as aventuras e os diálogos que lia nos meus livros. O
psicólogo James Hillman acredita que aqueles que leram histórias ou a quem foram
lidas histórias na infância estão em
melhor forma e têm um prognóstico mais favorável do que aqueles que têm ainda
de ser familiarizados com a ficção [...] Chegando no início da vida, é já uma
perspectiva sobre a vida. Para Hillman, estas primeiras leituras
tornam-se algo vivido e experimentado,
uma forma através da qual a alma se situa na vida. A estas leituras, e
por esta razão, voltei repetidas vezes, e volto ainda.
Como o meu pai estava no serviço diplomático, viajávamos muito; os livros
davam-me um lar permanente, um lar que habitava à minha vontade, em qualquer
altura, por mais estranho que fosse o quarto onde tinha de dormir ou por mais
ininteligíveis que fossem as vozes ouvidas do outro lado da minha porta. Muitas
noites, acendia o candeeiro enquanto a minha ama trabalhava à sua máquina de
tricotar eléctrica ou ressonava na cama em frente à minha e eu tentava chegar
ao fim do livro que estava a ler e, simultaneamente, adiar o final tanto quanto
possível, relendo algumas páginas, procurando uma parte que me agradara
especialmente, verificando pormenores que suspeitava terem-me escapado». In
Alberto Manguel, Uma História da Leitura, Editorial Presença, Lisboa, 1998,
ISBN 972-23-2339-3.
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