sábado, 4 de janeiro de 2014

Uma História da Leitura. Alberto Manguel. «Anotar as impressões da leitura de Hamlet, ano após ano, escreveu Virginia Woolf, seria praticamente registar a nossa própria autobiografia, pois, à medida que ficamos a saber mais sobre a vida, Shakespeare vai comentando o que aprendemos»

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Ler para Viver. In Flaubert

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«(…) A experiência das coisas tive-a em primeiro lugar através dos livros. Quando, mais tarde, me deparei com um acontecimento, circunstância ou personagem semelhantes àqueles sobre os quais tinha lido, o resultado era normalmente uma sensação algo perturbante mas desencantada de déjà vu, pois imaginava que o que se estava a passar nesse momento já me tinha acontecido em palavras, já tinha sido nomeado. O texto hebraico de pensamento sistemático e especulativo mais antigo que se conhece, o Sefer Yezirah, escrito no século VI, explica que Deus criou o mundo através de trinta e dois caminhos de sabedoria secretos, dez Sefirot, ou números, e vinte e duas letras. A partir dos Sefirot foram criadas todas as coisas abstractas; com as vinte e duas letras criaram-se todos os seres reais nos três estratos do cosmo, o mundo, o tempo e o corpo humano. O universo, na tradição judaico-cristã, é concebido como um Livro escrito, feito de números e letras; a chave para compreender o universo reside na nossa capacidade para ler estes números e letras adequadamente e conseguir o domínio das suas combinações, aprendendo assim a dar forma a alguma parte desse texto colossal, numa imitação do nosso Criador. (Segundo uma lenda do século IV, os eruditos talmúdicos Hanani e Hoshaiah estudavam o Sefer Yezirah uma vez por semana e, através da combinação acertada das letras, criavam um vitelo de três anos, que comiam ao jantar.) Os meus livros eram para mim transcrições ou glosas daquele outro Livro colossal. Num soneto, Miguel de Unamunos fala do Tempo, cuja fonte está no futuro; a minha vida de leitor dava-me essa mesma impressão de ir contra a corrente, de viver o que já tinha lido. A rua lá fora estava cheia de homens maus empenhados nos seus negócios escuros. O deserto, que não distava da nossa casa em Telavive, onde vivi até aos seis anos, era um prodígio, porque eu sabia que havia uma Cidade de Bronze enterrada debaixo da areia, do lado de lá da rua asfaltada. A gelatina era uma substância misteriosa que eu nunca tinha visto, mas que conhecia dos livros de Enid Blyton, e que nunca chegou a alcançar, quando finalmente a provei, a qualidade daquela ambrósia literária. Escrevi à minha avó, que vivia muito longe, a queixar-me de um problema sem importância, pensando que ela seria a fonte da mesma liberdade magnífica que os meus órfãos literários encontravam quando descobriam parentes há muito perdidos; em vez de me resgatar, ela enviou a carta aos meus pais, que acharam os meus queixumes vagamente divertidos. Eu acreditava em bruxaria e tinha a certeza de que um dia me seriam concedidos três desejos que inúmeras histórias me tinham ensinado a não desperdiçar. Preparei-me para encontros com fantasmas, com a morte, com animais falantes, com batalhas; fiz planos complicados para viajar para ilhas de aventura, nas quais Sinbad se tornaria meu amigo íntimo. Só quando, anos mais tarde, toquei pela primeira vez o corpo da pessoa amada é que me apercebi de que a literatura pode por vezes ficar aquém do acontecimento.
O ensaísta canadiano Stan Persky disse-me uma vez que para os leitores, deve haver um milhão de autobiografias, visto que se nos afigura encontrarmos, em cada livro, vestígios das nossas vidas. Anotar as impressões da leitura de Hamlet, ano após ano, escreveu Virginia Woolf, seria praticamente registar a nossa própria autobiografia, pois, à medida que ficamos a saber mais sobre a vida, Shakespeare vai comentando o que aprendemos. Para mim, era algo diferente. Se os livros eram autobiografias, eram-no antes do acontecimento, e eu reconhecia situações posteriores no que tinha lido em H. G. Wells, em Alice no País das Maravilhas, no lacrimoso Cuore de Edmondo De Amicis, nas aventuras de Bomba, o Menino da Selva. Sartre, nas suas memórias, confessa ter tido uma experiência semelhante. Comparando a flora e a fauna descobertas nas páginas da Enciclopédia Larousse com as suas correspondentes nos Jardins do Luxemburgo, descobriu que os macacos no jardim zoológico eram menos macacos, as pessoas nos Jardins do Luxemburgo menos pessoas. A semelhança de Platão, passei do conhecimento ao seu objecto. Encontrei mais realidade na ideia do que na coisa, porque aquela me tinha sido dada primeiro e como coisa. Foi em livros que encontrei o universo: resumido, classificado, rotulado, meditado, ainda cheio de força.
Ler forneceu-me uma desculpa para a privacidade ou talvez tenha dado um sentido à privacidade que me era imposta, visto que, durante toda a minha infância, depois de termos regressado à Argentina em 1955, vivi à parte do resto da minha família, a cargo da minha ama numa outra zona da casa. Nessa altura, o meu lugar de leitura preferido era o chão do meu quarto, deitado de bruços e com os pés enganchados numa cadeira. Mais tarde, a minha cama, pela noite dentro, tornou-se o lugar mais seguro e mais isolado para ler naquela região nebulosa entre a vigília e o sono. Não me recordo de alguma vez me ter sentido só; de facto, nas raras ocasiões em que me encontrava com outras crianças, achava as suas brincadeiras e conversas bem menos interessantes do que as aventuras e os diálogos que lia nos meus livros. O psicólogo James Hillman acredita que aqueles que leram histórias ou a quem foram lidas histórias na infância estão em melhor forma e têm um prognóstico mais favorável do que aqueles que têm ainda de ser familiarizados com a ficção [...] Chegando no início da vida, é já uma perspectiva sobre a vida. Para Hillman, estas primeiras leituras tornam-se algo vivido e experimentado, uma forma através da qual a alma se situa na vida. A estas leituras, e por esta razão, voltei repetidas vezes, e volto ainda.
Como o meu pai estava no serviço diplomático, viajávamos muito; os livros davam-me um lar permanente, um lar que habitava à minha vontade, em qualquer altura, por mais estranho que fosse o quarto onde tinha de dormir ou por mais ininteligíveis que fossem as vozes ouvidas do outro lado da minha porta. Muitas noites, acendia o candeeiro enquanto a minha ama trabalhava à sua máquina de tricotar eléctrica ou ressonava na cama em frente à minha e eu tentava chegar ao fim do livro que estava a ler e, simultaneamente, adiar o final tanto quanto possível, relendo algumas páginas, procurando uma parte que me agradara especialmente, verificando pormenores que suspeitava terem-me escapado». In Alberto Manguel, Uma História da Leitura, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-2339-3.

Cortesia Presença/JDACT