«- Nada! Nada me resta deste casamento! Nem marido, nem filhos, nem casa!
Maldita! Maldita cegonha! - Maldita cegonha! Maldita cegonha! Maldita
cegonha!... – repetia Judit. Após a oração da tarde, o wali de Mérida, Mahmud
al-Meridi, deparou-se na porta da mesquita Aljama
com uma multidão violenta e vociferante. Não o esperava e perdeu a sua
compostura. Estava acompanhado pelo seu secretário privado, pelo mufti
e por um grupo de notáveis. Ficaram todos surpreendidos e trocaram olhares
cheios de preocupação.
O chefe da guarda adiantou-se e, em plena rua, gritou para a multidão enfurecida:
- O que se passa? Porque protestam desta maneira? Fez-se silêncio. Raios de luz
enérgica enfrentavam as nuvens escuras que pressagiavam chuva. O ar estava
fresco, mas os ânimos estavam acalorados. - Abram alas! Afastem-se
imediatamente! - rugiu o chefe da guarda. - Deixem passar o governador!
Ninguém se mexeu. O wali Mahmud al-Meridi permanecia
inescrutável, determinado a não permitir que percebessem o seu desconcerto.
Vestia uma túnica berbere, sapatos de gazela africana e turbante de damasco; os
seus olhos negros brilhavam num rosto de pele escura e a sua barba ampla espalhava-se,
ondulada e entremeada de branco, pela parte superior do peito. O secretário
particular sugeriu-lhe ao ouvido, com toda a humildade, que perguntasse pelo cádi
dos muladis. O wali perscrutou a multidão com um
olhar duro e perguntou finalmente: - Está entre vocês Sulayman Aben Martin?
Ouviu-se um murmúrio denso, que foi crescendo até se converter, de
novo, em gritaria. De seguida, vários homens abriram caminho, avançando até à
porta da mesquita. Entre eles destacava-se um, alto, de constituição delgada e com
uma barba ruiva cuidada que, fazendo-se ouvir acima dos demais, disse: - Aqui
estou!
As línguas emudeceram-se e todos os olhos se fixaram nele, antes de se voltarem,
curiosos, para ver a reacção do wali. Este, olhando com condescendência
para o homem alto de barba ruiva, disse: - Sulayman Aben Martin, meu amigo,
hoje é sexta-feira e acabámos de colocar os nossos corações nas mãos do
criador. O que pode perturbar as vossas almas ao ponto de se reunirem aqui,
armando esta confusão?
A multidão exaltou-se e irrompeu de novo um murmúrio ensurdecedor e
confuso. Até que o chefe da guarda gritou com severidade: - Silêncio! Deixem
que o cádi dos muladis responda!
As vozes silenciaram-se. O tal de Sulayman endireitou-se e, com uma expressão
angustiada, falou do seguinte modo: - Wali Mahmud al-Meridi, governador e
juiz supremo de Mérida, nenhum dos que aqui estão deseja estragar-lhe a
sexta-feira, nem trazer à sua alma preocupações maiores do que aquelas próprias
da dignidade do seu cargo. Deus é o Criador e o Senhor, que dispõe segundo os
seus desejos. Ele diz "sê"
e existimos; ‘não sejas’ e não
existimos. E quem entre nós pode acrescentar ou retirar algo àquilo que
decidiu sobre as nossas vidas? Nem eu, que o Todo-Poderoso me livre,
acrescentarei nada esta manhã àquilo que o mafti disse, com toda a sabedoria,
no sermão, no minbar da mesquita de Aljama.
Mas bem o sabem todos os fiéis aqui reunidos que pregou sobre a purificação, a
base da fidelidade dos crentes para com Deus único e o Seu Profeta Maomé e o
cerne da honestidade que um homem deve a si mesmo e aos outros.
Sulayman teve de interromper o seu discurso, já que todos à sua volta tinham
começado a aplaudir. Então o wali ergueu nervosamente as mãos e
exclamou: - Deixem-no terminar! Como posso saber o que vos traz, aqui, se não param
com este escândalo? O cádi dos muladis elevou de novo a
voz e disse: - A nossa cidade não está feliz! Foi um ano muito mau para todos. Não
parou de chover desde o fim do jejum e as colheitas ficaram arruinadas, as
estradas estão intransitáveis e não há, forma de se tirar nada das hortas. É
verdade que há erva com fartura, mas as ovelhas têm os cascos doentes por causa
de tanta água... O Todo-Poderoso assim o quis! Bendita seja a sua vontade! Pois
Ele dá e tira e ninguém ousará questionar os seus desígnios.
Mas, apesar de ter sido tão desfavorável o tempo e tão grandes as perdas, nem por isso diminuíram os impostos, sendo sim cada vez maiores. As pessoas estão desesperadas!
As vozes intensificaram-se. Alguns gritavam furiosos: - É uma
injustiça! Não podemos pagar! De onde é que vamos tirar o dinheiro? Como vamos
dar de comer aos nossos filhos? Como vamos viver? Alá nos defenda! Justiça!
Justiça
e honestidade em nome de Alá!
Embora o wali Mahmud se esforçasse por aparentar calma, o seu rosto começava
a deixar transparecer a inquietação que o dominava. Em gesto de aviso, o
secretário particular aproximou-se dele e aconselhou-o entre dentes: - Será
melhor ir para o palácio. Isto pode tornar-se complicado... O chefe da guarda
ordenou aos guardas que se pusessem diante do cortejo. As pessoas afastaram-se
com grande relutância e continuaram a gritar bastante alto: - Alá é Grande! Justiça
em seu nome! Misericórdia! Baixem os impostos!...
Por seu lado, o cádi dos muladis e os seus
companheiros tentavam recuperar a ordem para continuar a conversa, mas a turba
não estava disposta a ouvir ninguém, apenas querendo manifestar a sua raiva». In
Jesús Sánchez Alalid, Alcazaba, Ediciones Planeta, 2012, A Última Muralha,
Mouros, Cristãos e Judeus unidos pelo Direito à Liberdade, Marcador Editora,
2012, ISBN -978-989-8470-57-7.
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