quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Inês de Castro. Memória de Inês de Castro. António C. Franco. «Não bastava ao rei mobilizar a classe nobre que, melhor ou pior, se sentia a ele presa por laços de vassalagem ou de senhorio. Era preciso mobilizar a intimidade da consciência popular, escalando um reduto último que era essencial a qualquer vitória militar»


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«O delírio é o primeiro indício da morte, mesmo quando se está no zênite da vida. Viver é queimar a vida, transformá-la em calor e claridade. A morte de Isabel de Aragão foi talvez o último gesto do seu apostolado. Saiu de Coimbra com destino a Estremoz, onde o rei Afonso então estagiava, e chegou ao Alentejo, no meio dos mais abrasados calores, a pensar partir para Valadolid, onde o rei de Castela, seu neto, então estava. A vida é breve, a alma é vasta. Ia requerer, de saquitel ao ombro, a vinda de Constança Manuel, garantindo-lhe a amizade do rei de Portugal. Pode-se, por isso, dizer que Isabel morreu num campo de batalha e que a sua morte foi nomeadamente uma trégua natural que se estabeleceu, em sua volta, entre Portugal e Castela. Isabel, mais do que Dinis, é a voz da terra ansiando pelo mar. D. Leonor de Aragão, sua neta e irmã do rei de Castela, veio a Santa Clara, para onde a rainha foi trasladada no meio dos grandes calores de Junho.
Essa trégua desfez-se mal os ecos da sua morte se desfizeram no horizonte. Em Setembro, Pedro, o conde de Barcelos e meio-irmão de Afonso de Portugal, sai de Lamego, por ordem do rei, à frente dum pequeno exército que atravessa o rio Minho e cerca o castelo de Entienza, onde se acolhera o arcebispo de Santiago de Compostela. Poucos dias depois, Afonso IV, atravessando o Tejo, põe cerco a Badajoz e assola Cortegana e Aracena. A guerra estava declarada e Afonso IV de Portugal contava que o flanco oriental de Castela fosse pressionado por Pedro IV que tinha já recebido a coroa real das mãos do arcebispo Pedro de Luna, na catedral de Saragoça. Saragoça é uma cidade triste, poeirenta e só a proximidade dos Pirenéus a justifica espiritualmente. Todavia, a sua posição frente à meseta castelhana justifica-a e justificou-a sempre como centro político por excelência, já que a independência de Aragão se esclarece tanto na luta contra Castela como no seu destino épico e marítimo. Saragoça foi assim uma primeira defesa natural da Catalunha e foi aí que Pedro IV jurou os foros e os privilégios do reino de Aragão, no ano de 1336. A discórdia que este rei mantinha com Afonso XI de Castela a propósito dos direitos de D. Leonor, sua madrasta, permitia ao rei português pensar que a necessidade de fazer guerra em duas frentes, a aragonesa e a portuguesa, lhe seria fatal. Não pensou assim Afonso de Castela e nomeou fronteiro de Múrcia Pedro de Erésia, guardando-se o rei para a fronteira ocidental.
A guerra era, independentemente de dois ou três sucessos ocasionais, um estado de espírito que se interiormente tinha alguma coisa a ver com o amor ou com a paixão, aparecia com o factor de coesão nacional. O maior ou menor grau de mobilização significava o grau de empenhamento colectivo, o que, por sua sua vez, indicava desde logo as possibilidades de envolver e superar todas as dificuldades. Pode-se ganhar uma guerra perdendo todas as batalhas, desde que o povo tenha consciência de que os seus valores e as suas tradições próprias não são alienáveis. Há rosas que subjugam cedros, como há sorrisos que desarmam um exército. Não bastava, por isso, ao rei mobilizar a classe nobre que, melhor ou pior, se sentia a ele presa por laços de vassalagem ou de senhorio. Era preciso mobilizar a intimidade da consciência popular, escalando um reduto último que era, como depois se viu, essencial a qualquer vitória militar. E, salvas raríssimas excepções, a guerra é, para consciência do povo, uma catástrofe que toma proporções de flagelo.
Foi isso que aconteceu no ano de 1337 quando Afonso de Castela passou por Elvas, Arronvhes, Veiros, Avis, Vila Viçosa e Olivença, deixando um rasto de cinzas e terrenos pisados. Ficaram casas incendiadas e houve gente que se deslocou a pé para Évora, para Santarém, onde estava o rei, e até para Lisboa. Passavam descalços, embrulhados em papéis ou em trapos, levando ao colo galinhas ou alguidares. Havia velhos que ficavam sentados nos caminhos, com os olhos parados na planície e a mão estendida. Os cães vinham-nos cheirar. A água desabava em bátegas inesperadas e foi deplorável o trajecto de todos esses refugiados. Chegaram a Santarém praticamente nus, onde o rei os mandou vestir e agasalhar. O Alentejo, sobretudo na parte Oriental, aparecia, depois desta ronda, como devastado, cheio de ruínas e de cadáveres, e o rei de Castela tinha-se retirado apenas por razões de foro íntimo. Leonor de Gusmão esperava-o em Sevilha». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.

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