quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Zé Povinho sem Utopia. Ensaio sobre o estereótipo nacional português. João Medina. «… povo deveras soberano e protagonista da história real, mas povo diminuído, ridicularizado por quem o governa, por quem o monta como a uma besta de carga, quem lhe deita albarda e o criva de impostos»

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«O país formiga de devotos do trono e do altar ou de quaisquer outras modalidades de conformismo para com o governo e a ordem, fosse ela liberal, monárquico-constitucional, republicana ou salazarista. Não se ousa, entre nós, subverter a ordem religiosa, política vigente, o que deriva, como é evidente, de um temor reverencial paralizante em relação a retaliações por parte dos que mandam, mas também por uma espécie de genética aversão a divergir, sobretudo sob a forma radical de erguer toda uma arquitectura de conceitos diferentes de cariz utópico. Uma vez ainda, a diferença com o panorama da vizinha Espanha é abissal, já que ali a pequena mas aguerrida guerrilha dos heterodoxos e heréticos assumidos marca a vida intelectual espanhola de um modo relevante e forte, a ponto de um estudioso lhe ter consagrado três grossos tomos de inventário dessa erva daninha.

NOTA: Trata-se da obra do filólogo e historiador Marcelino Menéndez Pelayo (1856-1912), autor de um ingente trabalho de investigação erudita que se traduziu na sua História dos Heterodoxos espanhóis (1880-1882), na História das Ideias estéticas em Espanha (1882),  n'As Origens do Romance (1905-1910), etc. Marcelino não se coibia, aliás, de incluir entre esses heterodoxos hispânicos alguns portugueses, como, v. g., Damião de Góis, ainda que explicitando que se tratava dos erasmistas em Portugal.

Entre nós, só no magro pelotão dos exilados e estrangeirados encontraríamos algo de equivalente a esses rebeldes espanhóis, embora em número bem mais reduzido. Mesmo no século XX não mudou este nosso sestro para sermos conformistas e timoratos pensadores sociais e políticos, mais cães de guarda ao serviço dos regimes instalados do que caçadores furtivos ou guerrilheiros rebeldes de um qualquer ideal dissonante, pois mesmo figuras anómalas não logram merecer plenamente o estatuto de contestadores frontais, mau grado o que tenham escrito sobre sistemas contra os quais combateram... A heterodoxia foi sempre maleita rara nos campos psíquicos lusos, já que aqui prolifera o escalracho do mais rasteiro conformismo ideológico e, de par com ele, imperam todos os tribunais de todos os santos ofícios encarregados de arrancarem as papoilas dissonantes que cresçam no trigal da establishment. A heterodoxia em Portugal tem as pernas curtas. Basta que nos recordemos do discurso do extremismo socialista do 25 de Abril: este oscilava entre o delírio quimérico romântico de castristas ou maoístas lusos, com variantes soft de terceiro mundismo, utopia de pantufas, ou alinhava pela gélida e chata vulgata cunhalesca em vigor nos arraiais estalinistas caseiros, com um olho muito aberto para as alavancas do poder real, mas não no mirífico V Império da tal História do Futuro. Os socialistas domésticos, ou mesmo estrangeirados, esses, muito fiéis à madrinha da social-democracia willybrantesca, ficavam-se por reformismos de boa cepa iluminista, ou republicana, mais próximos, portanto, de Kautsky do que do padre António Vieira... Dest'arte, o sebastianismo ficou de fora, esquecido na poeira das bibliotecas, mera tineta para eruditos: o FMI estava lá para impedir remakes
enlouquecidos das nossas velhas tonterias. Em suma, nem sebastianistas nem utopistas no pós-25 de Abril.

O sebastianismo não é utopizante
De qualquer forma, convém lembrar que o sebastianismo, forma portuguesa do messianismo, sonha com um Desejado ou um Messias miraculoso que pela sua simples presença/regresso redima maravilhosamente toda a Miséria Portuguesa e dê a todos um passadio confortável. Já em 1890 Fialho de Almeida definia o salvador sebástico como um protector misterioso que viria numa manhã de névoa pôr-nos a mesa, arranjar-nos emprego, mobilar-nos a casa, casar-nos rico.
E Jorge de Sena, com toda a sarcástica amargura do lusíada no Exílio, zombava da raça sebastiânica lusa, composta toda de rameiras e burocratas, a ouvir ranger no Encoberto a nau do Encoberto... Não há, deste modo, nos nossos sebastianismos, verdadeiro afã utópico, ou seja, falta-lhes autêntica subversão ética e político-social capaz de imaginar uma Cidade Perfeita, uma Cidade Feliz no futuro. O Zé Povinho, estereótipo nacional desde 1875, comprova este nosso conformismo moral e ético-psicológico: de mãos nos bolsos, somos sempre conformados e conformistas, incapazes de verdadeiras revoltas, mas tão só de explosões efémeras ou, de quando em quando, de um colérico brandir do gesto/protesto fálico, o Manguito, linguagem gestual de um povo resignado, ocasionalmente irritado, mas incapaz de imaginar uma sociedade sã e sabiamente governada, como dizia Morus. Não espanta, pois, que o Zé Povinho, um duplo diminutivo, note-se, não seja simplesmente Povo, ou seja, povo deveras soberano e protagonista da história real, mas povo diminuído, ridicularizado por quem o governa, por quem o monta como a uma besta de carga, quem lhe deita albarda e o criva de impostos». In João Medina, Zé Povinho sem Utopia, Ensaio sobre o estereótipo nacional português, C. M. de Cascais, ICES, Cascais, 2004, ISBN 972-637-118-X.


Cortesia da CM de Cascais/JDACT