quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «… como são produzidas, interpretadas e utilizadas as fontes? De que maneira devem e podem ser re-interpretadas, dando aos angolanos o lugar central na sua própria História, na História de Angola?»

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«Não se trata aqui de consagrar a reflexão aos agentes da produção da História, mas de chamar a atenção para o carácter aleatório dos corpus documentais. O objectivo desta comunicação é mostrar como as presenças angolanas nas fontes portuguesas que no passado, e frequentemente através dos mesmos documentos eram apresentadas como presenças passivas, são presenças activas, dinâmicas e autónomas, definindo opções e tomando iniciativas, assumindo o papel hegemónico nas relações com os portugueses, até aos finais do século XIX. O estudo desta questão organiza-se em torno de dois eixos centrais. O primeiro pretende pôr evidência, recorrendo a uma análise que articula estrutura e conjuntura, as condições de elaboração dos documentos escritos em língua portuguesa relativos aos espaços angolanos e produzidos por autores de origens diversas e, consequentemente, a organização dos preconceitos em relação a África e aos africanos. Abordados nestas condições, contextos, conceitos e preconceitos, é possível e necessário trabalhar os documentos a partir de dentro. Organizá-los, ordená-los, reparti-los, desconstruindo-os para poder estudar os seus diferentes níveis internos, identificando elementos temáticos homogéneos, definindo unidades problematizantes, descrevendo relações e estabelecendo comparações, são tarefas fundamentais do historiador para dar ao documento o vigor e a autonomia históricos indispensáveis à construção da História de Angola.
Por outras palavras:
  • como são produzidas, interpretadas e utilizadas as fontes? De que maneira devem e podem ser re-interpretadas, dando aos angolanos o lugar central na sua própria História, na História de Angola?
Presenças. Fronteiras e espaços angolanos
Os documentos escritos em língua portuguesa foram até há pouco frequentemente utilizados como fontes para a construção de uma história de Angola onde as presenças angolanas, espaços, homens, valores, sistemas de organização, se encontravam reduzidas a simples formas passivas, despojadas de qualquer racionalidade. Tratava-se de uma história que procurava nas fontes uma legitimidade científica e se destinava a reforçar a dominação colonial portuguesa: se por um lado se negava ou caricaturava a história dos africanos, por outro, procedia-se à exaltação da história dos heróis portugueses em Angola. A negação das presenças activas angolanas, associada à elaboração de uma escrita simultaneamente descritiva, narrativa, vazia de reflexão e deturpadora dos acontecimentos históricos, permitia reforçar o poder colonial e desestabilizar as realidades africanas.
A noção de presença merece alguns comentários, já que aparece como aquela em torno da qual se podem organizar re-leituras e re-interpretações das fontes. Do latim praesentia o substantivo presença significa estar diante, estar presente, perante os homens, perante Deus. Na língua francesa, o termo aparece em 1172 com um sentido religioso dominante (estar perante Deus). O seu conteúdo vai-se alargando:
  • presença é a existência de uma pessoa num lugar determinado, isto é, o espaço geográfico/territorial onde se instala e age;
  • presença é o aspecto, o semblante, a figura de uma pessoa, isto é, o seu aspecto físico; 
  • presença é, num sentido mais filosófico, o facto de estar, de agir e de integrar o mundo;
  • presença é num sentido mais contemporâneo e dinâmico, ter participação, desempenho, papel activo, político, económico, intelectual, num espaço determinado (país, região, mundo), quer se trate de um indivíduo, de um grupo social ou de outra forma de organização dos homens.
Presença subentende ainda partes em contacto, relação, confronto. O conteúdo dado a esta noção permite passivizá-la ou torná-la dinâmica, para reduzir os Africanos a objectos a-históricos como queria Hegel, ou para sublinhar a flexibilidade e a racionalidade dos sistemas africanos, no quadro dos quais foi possível criar formas de participação, de iniciativa, de respostas angolanas às propostas portuguesas. O que explica a longa duração da hegemonia africana na relação com os portugueses». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.


Cortesia de Caleidoscópio/JDACT