quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Escravos e Traficantes no império português. O Comércio Negreiro. Séculos XV a XIX Arlindo M. Caldeira. «Mas o fantasma dos navios negreiros persiste sempre que um ser humano, seja qual for a sua cor de pele, é transacionado como se fora um utensílio agrícola ou um animal doméstico»

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Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«Em 2008, participei num colóquio internacional em São Salvador da Baía sobre trabalho forçado. Tratava-se de um congresso de História, comemorativo dos 120 anos da abolição da escravatura no Brasil, e não foi sem surpresa que vi, entre a documentação distribuída no primeiro dia, um pequeno autocolante com uma mensagem cujas palavras não recordo com rigor, mas cujo sentido era diga não à escravidão, autocolante que quase todos afixámos no exterior das pastas ou no peito da camisa. E, num dos dias seguintes, circulou entre os participantes um abaixo-assinado exigindo maior rigor no combate ao trabalho escravo no Brasil. Em suma: estava vivo o monstro cuja data do funeral vínhamos comemorar. O Brasil praticava na circunstância, um acto de coragem, assumindo que a escravatura existia e que isso acontecia no seu próprio país. Soube, aliás, na altura, que o governo brasileiro aprovara nesse mesmo ano um projecto, denominado Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que tinha como objectivos, além da atenção às vítimas, a prevenção do tráfico e a repressão e responsabilização dos seus autores.
O problema está, porém, longe de ser apenas um problema brasileiro. Embora muitos Estados procurem ocultar essa realidade, a verdade é que a questão da escravatura e do tráfico de escravos continua a pôr-se, nos nossos dias, a nível absolutamente mundial, mesmo que com significativas variantes regionais. Não tem cabimento a ideia, corrente na Europa, de que o tráfico de escravos terminou quando, em meados do século XIX, teve fim o tráfico transatlântico que deportou milhões de africanos para as Américas. É certo que perdeu o carácter público que tinha nos séculos XVII ou XVIII e já não chegam aos nossos portos veleiros carregados de lamentos e de homens agrilhoados. Mas o fantasma dos navios negreiros persiste sempre que um ser humano, seja qual for a sua cor de pele, é transacionado como se fora um utensílio agrícola ou um animal doméstico.
Nas sociedades ocidentais, onde a escravatura e o tráfico de escravos pareciam ser, até há pouco, coisa definitiva do passado, a linguagem corrente foi alargando o emprego do léxico associado à escravatura a condições e situações que só remotamente têm a ver com o seu sentido original, tendo ganho um significado essencialmente metafórico. Assim, é com facilidade que falamos de escravos a propósito de indivíduos em situação de dependência de outra pessoa (escravos de amantes, de filhos, de progenitores), de uma coisa (escravos de um vício; escravos da moda) e até de uma ideia ou de uma religião. E também podemos ouvir autointitularem-se escravos aqueles que desenvolvem uma actividade que, mesmo que compensadora, impõe uma sujeição acima do habitual ou cuja retribuição não corresponde ao esforço despendido. Em 2011, entre os jovens portugueses inconformados com a situação social e política, tornou-se quase um hino uma canção que dizia: ...Sou da geração sem remuneração / e não me incomoda esta condição. / Que parvo(a) que eu sou! / Porque isto está mal e vai continuar, / já é uma sorte eu poder estagiar./ Que parvo(a) que eu sou! / E fico a pensar, / que mundo tão parvo / onde para ser escravo é preciso estudar.
Naturalmente, não é desta escravatura metafórica que falamos quando falamos nos escravos contemporâneos. Em muitos lugares do Mundo, há mulheres, homens e crianças cuja liberdade pertence a outros, que os utilizam para os trabalhos mais violentos ou mais ignóbeis. A Organização Internacional do Trabalho calcula que o tráfico de pessoas possa movimentar 32 mil milhões de dólares por ano, pelo que é apontado como uma das actividades criminosas que mais lucros proporcionam. Mesmo na União Europeia, considera-se que o tráfico de seres humanos está a aumentar nos últimos anos, gerido por redes de grupos organizados provenientes sobretudo da Europa Central e de Leste. Segundo um documento oficial de 2010, as mulheres e as crianças, as principais vítimas, são, na maioria dos casos, transportadas além fronteiras e obrigadas a prostituírem-se ou a executar trabalhos forçados. As crianças vítimas de tráfico são também exploradas e obrigadas a praticar a mendicidade ou actividades ilegais, tais como pequenos furtos. Preocupados com essa evolução, o Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram em Abril de 2011 uma nova directiva relativa à prevenção e luta contra esse tipo de tráfico». In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.

Cortesia Esfera dos Livros/JDACT