Falcões. Wiltshire, Setembro de 1535
«(…) O Rei deixara Whitehall na semana da morte de Thomas
More, uma lúgubre e chuvosa semana de Julho, as pegadas dos cascos da
comitiva real marcadas bem fundo na lama do caminho que percorriam na travessia
para Windsor. Desde então, a progressão incluiu um bom troço dos
condados ocidentais; os ajudantes de Cromwell, tendo concluído os
assuntos da Coroa a tratar em Londres, encontraram-se com o séquito real em
meados de Agosto. O rei e os seus companheiros dormem o sono dos justos em
casas novas de tijolo rosado, em casas velhas cujas fortificações ruíram com o
tempo ou foram demolidas e em castelos de fantasia que parecem brinquedos,
castelos nunca susceptíveis de fortificação, com paredes que uma bala de canhão
meteria dentro como se fossem de papel. A Inglaterra vem desfrutando cinquenta
anos de paz. É este o pacto dos Tudor; a paz é o que eles oferecem.
Todas as famílias se esforçam por apresentar ao Rei as suas melhores galas e,
nestas últimas semanas, temos assistido a algumas operações de reboco acometidas
em pânico, a alguns urgentes trabalhos de alvenaria, pois os seus anfitriões
afadigam-se para exibir a rosa dos Tudor ao lado das suas próprias
insígnias. Procuram e obliteram qualquer rasto de Catarina, rainha que foi,
esmigalhando com martelos as romãs de Aragão, os seus fragmentos rachados
e as suas sementes esmagadas que voam. Em seu lugar, se não há tempo para
esculpir, o falcão de Anne Boleyn é pintado grosseiramente
em painéis improvisados.
Hans juntou-se a eles no caminho e fez um retrato da rainha Anne, mas
não lhe agradou; como se lhe agrada
por estes dias? Desenhou também Rafe Sadler, com a sua barbicha bem
aparada e a sua boca determinada, de chapéu à última moda, um disco de plumas
precariamente equilibrado na sua cabeça rapada. - Fez-me o nariz muito
achatado, mestre Holbein – reclama Rafe. - E terei eu poderes, senhor, para consertar o vosso nariz? - retorque
Hans. - Partiu-o quando era pequeno – diz, a correr na pista. Eu próprio o
tirei de baixo das patas do cavalo e era um bem triste espectáculo, a chorar
pela mãe. - Apertou o ombro do rapaz. -Vá lá, Rafe, animai-vos. Acho que
ficastes muito bonito. Lembrai-vos do que Hans me fez.
Thomas Cromwell tem agora perto de cinquenta anos. Tem um corpo
de trabalhador, entroncado, útil, começa a engordar. Tem cabelo preto, que está
agora a ficar grisalho, e por causa da sua pele pálida impermeável, que parece
feita para resistir tanto à chuva como ao sol, as pessoas regougam que o pai
era irlandês, embora na realidade fosse um cervejeiro e ferreiro de Putney, um
tosquiador também, um homem dos sete ofícios, belicoso e arruaceiro, um bêbado
e um abusador, um homem muitas vezes levado perante os juízes por espancar
alguém, por vigarizar alguém. Como o filho de um tal homem alcançou a sua
presente eminência é uma pergunta que toda a Europa faz. Dizem uns que
subiu com os Boleyn, a família da rainha. Há quem diga que foi tudo graças ao
falecido cardeal Wolsey, seu patrono; Cromwell gozava da sua confiança e
fê-lo ganhar dinheiro e conhecia os seus segredos. Outros dizem que cultiva a
companhia de feiticeiros. Esteve fora do Reino desde rapaz, mercenário,
comerciante de lã, banqueiro. Ninguém sabe ao certo onde esteve e quem conheceu
e ele não tem pressa em contar a história.
Nunca se poupa ao serviço do Rei, tem consciência do seu valor e dos seus
méritos e assegura-se de que são recompensados: lugares, privilégios e títulos
de propriedade, casas senhoriais e quintas. Tem um modo de conseguir o que
quer, tem um método; é capaz de seduzir os homens ou suborná-los, persuadi-los
ou ameaçá-los, capaz de lhes explicar onde residem os seus verdadeiros
interesses e revelará a esses mesmos homens aspectos deles próprios que
desconheciam. Todos os dias, o secretário-mor lida com nobres que, se pudessem,
o destruiriam com uma palmada vingativa, como se fosse uma mosca. Sabendo isto,
distingue-se pela sua cortesia, a sua calma e a sua infatigável atenção aos
negócios de Inglaterra. Não tem o hábito de se explicar. Não tem o hábito de
falar dos seus êxitos. Mas sempre que a sorte lhe bateu à porta, lá estava,
plantado na ombreira, pronto a abrir a porta de par em par ao mais tímido
raspar na madeira». In Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012, O Livro Negro, Civilização
Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.
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