O Algarismo e o Número
«(…) Olha, disse-lhe Arnal indicando um a zona da parede pintada
de azul, o azul é uma cor fria e o vermelho é quente. Mas não queima, disse
Teresa. Não, não queima, mas dá a sensação de calor. Repara nestas cenas. Arnal
levou a filha para um lado do andaime. Nesta abside central da catedral um
grande fresco representava a coroação da Virgem rodeada por anjos músicos. Observa
como alternam peças de cores vermelha e azul nas roupas destas figuras. Parece
que as azuis estão mais longe e dá a impressão de as vermelhas estarem muito
mais perto. Pintamo-las assim para que se vejam as figuras como se tivessem
relevo, como se fossem esculturas. Se não observares bem, semicerra um pouco os
olhos e olha de novo. É verdade!, exclamou a menina. Bem, não passa de um truque.
Há muitos outros; se gostas de pintar, ensinar-tos-ei todos. Sim, sim!, gritou
Teresa um tanto excitada. Mas a seu tempo. Se queres ser pintora, deverás preencher
todos os requisitos. Eu ajudar-te-ei mas, sobretudo, tem de ser coisa tua.
Compreendes? A menina assentiu com a cabeça. Bom, agora é altura de
descansares. Quero pintar mais, disse Teresa. A seu tempo, minha filha, a seu
tempo, tudo a seu tempo.
O jovem soberano Henrique de Castela estava a brincar com
vários rapazes da sua idade, filhos de nobres e das altas dignidades do reino.
Herdeiro do grande Afonso VIII, o vencedor de Navas de Tolosa, e de Leonor de
Inglaterra, tinha apenas dez anos de idade quando foi proclamado rei, após a
morte dos pais. Aos treze anos era um rapaz bem-parecido, de compleição forte e
rosto delicado. Pelas veias fluía-lhe o sangue da sua avó, a bela duquesa
Leonor de Aquitânia, a mulher mais famosa da última centúria, rainha de França,
primeiro, e de Inglaterra depois, e tinha o nome do avô, o rei Henrique II de
Inglaterra, o soberano mais ousado, ambicioso e temerário do século anterior. Foi
um acidente. Soltou-se uma telha do beiral e foi bater na cabeça do jovem rei
Henrique, enquanto brincava com uns rapazes, produzindo-lhe uma gravíssima
fractura de crânio. Os médicos judeus da corte de Castela tentaram salvar a
vida do monarca e fizeram-lhe inclusivamente uma trepanação, procurando
estancar a maltratada massa encefálica, mas nada puderam fazer pela sua vida. O
jovem soberano de Castela morreu aos treze anos de idade deixando o reino sem
um herdeiro varão à frente.
Naquele ano de 1217
havia já sessenta anos que Leão e Castela se tinham separado. Foi à hora da
morte que o rei Afonso VII, chamado o
Imperador, dividiu os seus domínios em dois e os entregou aos dois filhos:
deu Castela a Sancho e a Fernando, Leão. Enquanto reinou o jovem Henrique, foi
o nobre Álvaro Nuñes Lara quem de facto se encarregou do governo de Castela.
Chefe de uma das famílias mais influentes e poderosas do reino, esta personagem
exercera como verdadeiro soberano, durante a infância de Henrique, apoiado
pelas todo-poderosas ordens militares. Falecido o seu irmão Fernando, apenas
várias irmãs tinham sobrevivido ao malogrado rei Henrique; Berenguela era a
mais velha. Nascida alguns anos antes dele, casara-se com o rei Afonso de Leão,
homem ambicioso e de forte carácter, que também aspirava à coroa de Castela.
Desse casamento real haviam nascido vários filhos, mas na Primavera de 1204 o papa Inocêncio III declarara-o
nulo, pois os dois cônjuges eram aparentados em linha directa; o avô de
Berenguela de Castela e o pai de Afonso de Leão eram irmãos.
Um dos filhos do rei de Leão e de Berenguela de Castela chamava-se
Fernando. Era três anos mais velho que o seu tio Henrique e o favorito de
Berenguela. Um cavaleiro anunciou a Berenguela que o seu irmão, o rei Henrique,
tinha morrido. Os médicos nada puderam fazer pela sua vida, minha Senhora.
Tinha os ossos da cabeça partidos e os miolos destruídos. O cirurgião judeu fez
quanto pôde e submeteu o rei a uma operação ao crânio, mas Sua Majestade
faleceu. Escuta. Há que manter em absoluto segredo a morte do rei. O meu antigo
esposo, Afonso de Leão, mais que qualquer outra coisa, deseja anexar Castela e
isso não deve acontecer. Mas, Senhora, interveio o cavaleiro, Castela não pode ficar
sem rei. E não ficará. Parte imediatamente para as terras de Leão e
apresenta-te diante do rei. Serás portador de uma carta pessoal minha em que lhe
vou solicitar que permita que o meu filho Fernando venha passar uma temporada
comigo. Dir-lhe-ás que há tempos que não o vejo e sinto saudades da presença
dele. E, sobretudo, não reveles que o rei Henrique morreu. O rei de Leão estava
por aqueles dias na vila de Toro com o filho Fernando e as infantas Sancha e
Dulce, por sua vez filhas da primeira mulher, a infanta dona Teresa de
Portugal, cujo casamento também fora anulado pela mesma razão de consanguinidade».
In
José Luís Corral, El Número de Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das
Catedrais Góticas, tradução de Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006,
ISBN 972-731-185-7.
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