Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
Capitulum decimum
«(…) A história nos
conta que havia então em Malemort uma moça chamada Aviz. Tinha rosto meigo e
era pequena de corpo, tanto que sua pessoa parecia ter treze anos, mas os anos
de sua idade, dizia-se, já eram dezoito completos; e ela achava Amidieu tão
vistoso e delicado que havia algum tempo se enamorara dele. Um belo dia,
enquanto ele, sentado sob uma das janelas da cozinha, perdia-se em pensamentos de
contemplação, ela estava lá dentro e, por acidente ou por querer, derramou-lhe
à cabeça a água que usara para lavar panelas, o que fez muito rirem e se
alvoroçarem as mulheres que ali fora andavam em seus afazeres. Aquele incidente
o incomodou, por isso ergueu-se e começou a afastar-se sem dizer nada.
Com isso, a moça Aviz saiu e veio correndo e sem qualquer recado abraçou-se a
ele e o beijou, coisa que fez, creio eu, só para se desculpar. Aí entre as
outras mulheres o riso e a chacota foram ainda muito maiores que antes, tanto
que caíram todas sentadas no chão rindo-se como um bando de loucas. Roger ficou
muito mais confuso pelo beijo do que pela água derramada na cabeça, então
afastou-se dali e passou os portões e saiu campo afora. Uma das mulheres
começou a incitar Aviz a segui-lo, dizendo, vai, meu amor, vai depressa, vai
jogar teu jogo com ele. Que jogo é esse, disse ela. O jogo que homem e
mulher costumam jogar juntos, respondeu aquela: não há coisa melhor neste
mundo. Já está mais do que na hora de jogares, disse outra, e Roger bem que
serve para jogar contigo. E disse uma terceira, É só para isso que a mulher
existe, para ter conforto e prazer na companhia do homem. E de novo a primeira,
ah, que seria da mulher sem o prazer que lhe dá o homem? Estás perdendo tempo,
meu amor, e mais todo o prazer que teu corpo te pode dar. E o que digo é para
teu bem, já que não sabes o que é a companhia de um homem. Se soubesses o
prazer que têm as outras mulheres, não darias valor a nada mais; pois temos
tanto prazer na companhia dos homens que amamos que, se não tivéssemos mais que
um naco de pão, ainda assim temos mais prazer e deleite do que tu com todas as
iguarias do mundo.
Então ela saiu e foi
seguindo Roger, mas, quanto mais o seguia, mais ficava para trás, até que ele
entrou num bosque e desapareceu de vista. Lá foi ela atrás dele e por fim,
depois de muito andar e muito procurar, achou-o rezando ajoelhado ao pé de um
grande carvalho. Então achegou-se e ficou de pé diante dele, mas ele não ergueu
os olhos, mas continuou rezando como antes. Então ela disse, ora, Roger, porventura
aqui é lugar e hora de rezar? E respondeu ele, todo lugar e hora é hora e lugar
de rezar, pois o tempo de nossa vida é muito curto. E respondeu ela, ah, Roger.
Somos jovens e cheios de vida: deixemos as orações para quando tivermos mais
idade, pois agora é tempo de jogar. Ele perguntou o que ela queria dizer. Eu te
amo, ela disse, e quero jogar meu jogo contigo. Que jogo é esse, disse ele. O
melhor jogo do mundo, respondeu ela: o jogo que homem e mulher costumam jogar
juntos. Ela parecia uma criança, e não inspirava nele desejo mas ternura. Então
ele disse, Querida Aviz, se amas teu corpo, maior razão para amares tua alma.
Por isso, uma palavra de conselho: as almas chegam ao inferno aos montes, hoje
e sempre; o porteiro à entrada do inferno fica ocupado o dia todo, levanta cedo
e dorme tarde, não descansa nunca. Esse jogo de que falas não vale nada aos
olhos de quem tudo pode e tudo determina, mas te conduzirá directo aos portões
do inferno. Não, meu amor, ela disse. A boa mulher que falou comigo disse
verdade.
Muito mal empregas teu
tempo desse belo corpo que tens, que nunca saberá o que é prazer se tudo que
lhe dás são rezas e jejuns. Aí Amidieu disse a ela o que o peregrino lhe
dissera antes, dizendo, Aviz, nosso último dia é um mistério: sabemos que
virá, mas não sabemos quando, nem a que hora. O ladrão preso no cárcere
sempre indaga onde está o juiz e quando será a sessão, e anda sempre cheio de
angústia com medo da forca: devias fazer a mesma coisa, pois dia virá de
compareceres perante o julgamento de Deus para dares conta de todas as tuas
ações. Como te atreverás então a olhá-lo no rosto? Porque ali só trarás contigo
tua angústia no peito e teus pecados ao pescoço. Tuas palavras ímpias e vãs,
tuas más acções, não as poderás ocultar, mas terás de responder por tudo que
fizeste. Assim, minha pequena, pensa em tua alma e não ouças conselho algum que
possa ser em prejuízo dela. E nada mais disse ele a ela, mas baixou os olhos e
voltou às suas orações». In Alan
Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho
de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca
Pública do Espírito Santo, 2011.
Cortesia de Jazzseen/JDACT