«(…) Dizem que o vício de Ataíde não é raro cá pelo reino, declarou
espantosamente um frade de voz aflautada que raras vezes falava. Como sabeis?,
quis um outro saber. Ouvi contar que num convento... O relato foi, de pronto,
interrompido pelo cardeal: … bom, e adiante, que frei Nicolau fale com el-rei
que eu tomarei outras medidas. Rachem-me o coiso a esse enrabad…, ouviu-se gritar.
Que linguagem desbragada usam estes santos homens, pensou o cardeal. Nem
parecem homens de saber que até falam latim e citam, autorizados, palavras
divinas. É melhor avisar os do paco que vão resguardando seus c…, sentenciou frei
Nicolau. E a reunião foi dada como finda. Simão Cordovil, alheado da discussão,
dava tudo para poder sentar-se.
Em todas as latitudes,
longitudes e lugares há verdadeiros imbecis, apreciava el-rei em seu pensar mais
profundo. Alguém lhe contara, ou melhor, lhe espevitara a memória contando-lhe
uma história que ouvira muito mais que trezentas vezes repetida, esquecendo-a
depois, que memória de rei não tem os caprichos de memória vulgar. A história
era esta: o navegador Vasco chegara a um lugar cheio de primitivas criaturas, umas
alimárias fedorentas sem jeito nenhum e a quem chamavam Bosquímanos, e resolveu
tratá-los como se fossem gente ou como se a alma tivessem e dela fossem hábeis no
usar.
Com deferência, Vasco
mostrou-lhes ouro, pérolas, e, mais preciosas coisas ainda, como o cravinho e a
canela. As grandes bestas índias nem se emocionaram, nem palpitaram, pareciam
ver coisa banal ou mesmo nada verem, uma inquietação desesperante. Quando Vasco,
insistente, lhes estendeu frivolidades, contas de vidro, anéis de estanho,
guizinhos sonoros e barretes vermelhos desses que os marinheiros usam a bordo e
que certa gente do povo aproveita para usar para seu dormir aconchegado com
sonhos aquecidos e cabeças isentas de relentos, então, e só então, ficaram os
idiotas maravilhados.
As bestazinhas índias,
felizes da vida e das oferendas, foram buscar brincos de conchas e rabos de
lobo ou de chacal, alguns amarrados a canos de madeira, e ofereceram-nos a
Vasco e aos seus, que se fingiram contentes com tamanhos alarves e suas
alarvidades... El-rei recordava a história e ria. Tinha razões para rir. Satisfeito
com o tratamento da bruxa, o monarca gozava mais e melhor os seus lazeres, as
chagas doíam-lhe menos, ouvia histórias, contava-as, e ganhara o estranho hábito
de pensar.
Nessa tarde, el-rei pensava.
Pensava, por exemplo, que ser senhor de um grande reino é coisa tão fácil como
ser dono de um quintal comn três galinhas. E que os homens são tão estúpidos
porque nascem estúpidos e não há luz no mundo que os torne espertos senão a luz
imaculada que faz com que alguns nasçam reis e, portanto, sem esforço sempre
sábios e sempre autorizados.
Os padres sabiam latins e citações; os astrónomos sabiam de estrelas;
os índios só de conchas, do luar, ou de outras parvoeiras; os físicos de
pústulas e achaques e muito pouco de varizes…; mas, e os reis? Os reis sabiam
sempre tudo e de tudo, mesmo o que ignoravam sabiam-no melhor do que ninguém… Os
reis podiam nascer anormais, ou doidos, ou feios como bodes, podiam ser
íntegros, desbragados, gostar de homens, de mulheres, odiarem tudo e todos, que
os respeitariam... Diante do espelho, el-rei contemplou-se e sorriu. Que bela
imagem, que porte o de um rei assim, mesmo com faces de coirão irremediável. Afagou
o ventre, rodeando-o depois com seus braços desmesurados. Gostava de si, isso
bastava-lhe. E é que gostava mesmo muito... Irra, que ventura!» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo
de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
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