«Um não sei quê
que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê». In
Luís de Camões
«(…) Já desisti
de explicar à dona Zilda que não sou doutor. Ela é uma secretária à antiga,
herdei-a do meu avô, toda a vida secretariou doutores e tem imensa vergonha
desta despromoção que é trabalhar para um sujeito sem título académico. Portanto,
se o senhor doutor permitisse, eu ausentava-me três dias para cuidar da minha
mãe que tem noventa anos e apanhou uma forte gripe. Esta Joana é capaz de não
dar conta de tudo mas agora entrou uma moça nova para as relações públicas que
também tem formação de secretária, já lhe falei e ela não se importa, se o
senhor doutor autorizasse eu já não vinha de tarde. Está autorizada, dona
Zilda, mande cá a menina das relações públicas, vejo que já tratou de tudo,
aliás como sempre, vá descansada que elas cá se hão-de desenrascar. Fico-lhe
muito grata, senhor doutor e já liguei para a florista, está resolvido o
assunto da senhora dona Constança e o doutor Almeida aguarda uma palavrinha do
senhor para marcar a reunião. Ah, e o seu paizinho não vem de manhã. Com pequenas
variantes um dia como todos os outros, até que bateste levemente na porta e
inundaste a minha sala com a água clara dos teus olhos e salvaste a minha vida
com o filtro mágico do teu sorriso e acendeste o mundo com o ouro da tua trança
semidesfeita e disseste, venho saber no que posso ajudá-lo, o meu nome é
Inês.
Relembro este
instante e logo outro com ele se confunde, outro bem mais remoto mas igualmente
numa manhã de Inverno que secava ao sol a chuvada da véspera. Correria, não
sei, talvez o ano de 1335, ou 1337, mas quem pode confiar na memória
de um louco e que importam as datas nessa dinâmica fora do tempo a que chamam
paixão. Estava de visita ao meu amigo Álvaro Castro, na Galiza, quando ele
disse, (e garantiram mais tarde que não o fez por acaso) gostaria de
apresentar-vos a minha irmã Inês, e empurrou a porta que dava para o
pátio interior da casa e me fez aceder à contemplação dessa visão imorredoira,
uma adolescente alvíssima de longas tranças, bordando a matiz, no seu bastidor,
uma grinalda de flores e borboletas. Quem poderia imaginar que essa imagem de
serenidade e paz desencadearia para todo o sempre os ventos da tragédia, da
loucura, do amor e da morte? Eras a mais cândida das donzelas. Ergueste
para mim os olhos, tão de mar que neles passavam barcos ao longe, voos
tranquilos de gaivotas.
Mesmo depois das
palavras do teu irmão, demoraste algum tempo a perceber que estavas na presença
do Infante de Portugal e então, confusa e risonha, ergueste-te e, segurando o
bastidor, com a agulha encostada ao dedal de ouro, fizeste a tua vénia rápida e
infantil. Mas não eras criança. Já o cinto te cingia as ancas, o
peito despontava no corpete de lã. O olhar, que mantiveste erguido enquanto
te inclinavas e as tranças louras te roçavam os joelhos, era de mulher,
determinado, altivo e tocado de azul. Quando, anos depois, entraste no reino de
Portugal como aia da Princesa minha esposa, bastou-me ver aflorar à comissura
esquerda da tua boca a sombra imperceptível de um sorriso, para saber que, tal
como eu, não esqueceras aquela manhã soalheira de Inverno, aquela corrente
de desejo que nos atou e que te fez Rainha ainda antes que o próprio
destino o suspeitasse. Ó Pedro, abre lá a porra dos olhos
que está aqui o almoço, enquanto não acalmares o facho não vais ao refeitório
sou obrigado a pegar no prato de alumínio, a receber no nariz o bafo das
batatas com bocados de fígado sabe-se lá de que animal, um molho aguado,
rosado, a cheirar a adubo de tubérculo, às vezes pinto estes odores de comida
requentada nos meus quadros de louco, numa fúria de borrões abstractos para não
te retratar a ti, cuja beleza não é digna de nenhum manipulador de tintas e
pincéis, às vezes a tua trança emerge da confusão alucinada das formas e
eu sei que estás lá, que entraste na tela só para brincar comigo, com o meu
coração esfarrapado, a minha incurável melancolia.
Mastigo como um
ruminante apático a comida, fazendo sopas de pão duro no molho, nada me sabe a
nada, tanto faz, e vem-me à ideia um outro tempo, a certeza de ter lá estado,
não, não é o século catorze, aí não havia batatas, um outro tempo, mais limpo,
mais claro, mais calmo, mais natural, mas nem por isso menos cruel. Sonho às
vezes contigo nesse tempo futuro, não sei se são as drogas que eles me injectam
que me fazem viajar na imaginação, na memória-ao-contrário, se, simplesmente, a
intemporalidade da nossa paixão nos dá o dom da ubiquidade através de todas as
eras, ou se vítimas de uma maldição, nos cabe a nós representar o homem eterno,
a mulher eterna, renovando perenemente a mesma história singela e consabida de
sujeição, amor, e morte antecipada. Quando começámos a sair juntos, para jantar
quase sempre, para passear em jardins ou em museus às vezes, foi crescendo no
escritório um murmúrio inaudível de intriga, um clima inconfundível de
reprovação». In Rosa Lobato Faria, A Trança de Inês, Círculo de Leitores, cortesia
de ASA Editores, 2005, ISBN 978-989-660-034-1.
Cortesia
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