«(…) Continua
indisponível, disse Pedro. Não insistas. Ela foi dar um passeio e não tem rede.
A Margarida diz que tu às vezes és um chato, e eu estou a ver que ela tem
razão. Se eu ao menos soubesse em que hotel ela está. Mas não diz nada. Vou a
Vila Real ou Bragança, ou Braga, sei lá, fazer uma palestra. Quando voltar
telefono. Mas nem volta, nem telefona. Já é meio-dia, vou ligar à Matilde. Não
faças isso, vais alarmar a senhora sem necessidade. Tens razão. É melhor
aparecer à hora do almoço. És mesmo um chato, Pedro! Não sou eu que sou chato.
És tu que não percebes nada de amor. Tens um casamento estável, tranquilo, uns
filhos óptimos, para ti o amor é um dado adquirido. Mas de um modo geral há um
que ama e outro que se deixa amar. Não é isso que dizem? Mariana, sabe alguma
coisa da sua irmã?
Eu não, mãe. Não
faço ideia. Acho que foi para o Norte. Vila Real, ou lá o que é. Ah, pois, é
isso. Matilde estava a par das escapadelas da filha e tinha resolvido achar
tudo natural. Preferia que ela tivesse dado um telefonema, como às vezes fazia,
para dizer estou bem, mas talvez estivesse tão bem que nem lhe ocorresse
telefonar. Antes assim. Desde que tivesse saúde. Quando Pedro chegou,
mostrou-se tão tranquila que o contagiou com essa calma que muitas vezes a
caracterizava. Senta-te, Pedro. Vou buscar um aperitivo. Mas Pedro não
conseguia sentar-se. Andou às voltas na saleta de Matilde e reparou, na camilha
do canto, numa fotografia que nunca tinha visto: Margarida vestida de dama
antiga, segurando nas mãos um colar de pérolas. E quando Matilde voltou, que
linda que está a Margarida nesta fotografia, vestida de dama antiga. Ela que
odeia o Carnaval... Não é a Margarida, é
a minha bisavó, que por sinal também se chamava Margarida. Uma parecença
incrível, não achas? Impressionante. Pedro sentiu-se um pouco tonto.
Sentou-se com a fotografia na mão e pareceu-lhe que aquela outra Margarida
troçava da sua preocupação e do seu amor.
Margarida, no
desespero de não ter um duche que lhe fornecesse água para o banho ou electricidade
onde pudesse ligar um secador, lá ficou pronta, lavada a prestações, penteada
pela Lucinda, vestida de menina rica do princípio do século vinte. Em
compensação, o pequeno-almoço requintado tinha feito as delícias de uma
viajante esfomeada. Um século mais tarde não teria comido melhor. A Lucinda
levou a bandeja e recomendou-lhe que não se demorasse. Não tinha alternativa:
era preciso descer. A escadaria, cheia de quadros, abafava os passos na
passadeira de veludo bordeaux e as
vozes, vindas de baixo, indicaram-lhe o caminho. Tinha imaginado que talvez os
pais se parecessem com os pais, mas, a serem aquele casal austero, não se
pareciam nada. A senhora, bastante velha, estava vestida de preto com uma blusa
branca dejabot onde se aninhava um
camafeu. Um cordão de ouro com duas voltas e brincos de brilhantes nas orelhas.
O cabelo grisalho estava apanhado com várias travessas de tartaruga e sobre a
cabeça tinha um pequeníssimo véu de tule bordado. Margarida pensou que se ela
pintasse o cabelo havia de aparentar menos dez anos.
Bom-dia,
Margarida. Está muito bonita. Dê-me um beijo, não precisa de estar assustada,
disse a mãe com doçura. O pai não lhe vai ralhar por ter dormido até tarde. Nós
sabemos que ontem não se sentia bem. Está melhor?, perguntou o pai, dando-lhe a
mão a beijar. Estou um bocadinho melhor, obrigada. Queria ter dito obrigada,
pai, mas não conseguiu. Sente-se, então. Não abuse das forças. Mariana também
estava na sala. E essa sim, era idêntica à sua irmã do mesmo nome. Estava, como
ela própria, mascarada de menina antiga e pareceu-lhe que tinha vontade de rir.
O Senhor Novais Souza vai escolher-te a ti, tenho a certeza. Faz sentido,
Mariana. A sua irmã é a mais velha e está em idade de casar, disse o pai.
Espero que se portem impecavelmente. Não quero risinhos nem segredinhos.
Correctas, discretas e, quanto a palavras, só as indispensáveis. Que idade terá
esse senhor?, atreveu-se a perguntar Margarida. Estará na casa dos cinquenta,
como eu. É um homem na força da vida. Está muito conservado. É viúvo, disse a
mãe. E não tem filhos. Só um sobrinho que criou como se fosse filho dele. E
quem se casar com o Senhor Novais Souza tem que fazer as vezes de mãe do
sobrinho?, perguntou Mariana». In Rosa Lobato Faria, As Esquinas do Tempo,
Porto Editora, colecção Marca de Água, 2008, 2011, ISBN: 978-972-0-04181-4.
Cortesia
PEditora/JDACT