4
de Janeiro de 1902
«(…)
Pois bem, se não querem mais nada vou tirar o espartilho que começa a inibir-me
a respiração, há aqui uma barba do lado direito espetada no ilíaco, aprendi os
ossos com o meu professor de ciências, que é simultaneamente o meu catequista e
confessor, não se pode entregar a docência da anatomia a um ateu, sabe Deus que
ignomínias ensinaria a uma menina de boas famílias. E então a tia Joséphine chama-me
à realidade, já que perdi o final do discurso do tio por causa do espartilho e
articula, …ali, naquele salão luxuosamente ornado de veludos, esta frase espantosa:
vous avez compri, Camille?
Monsieur Seabra vem de nos pedir a sua mão. Fico tonta. A Paca apertou
de mais os atilhos. Continuo de olhos baixos e agora fala o tio. …é
verdadeiramente uma felicidade para todos nós que um homem tão ilustre,
professor da Escola Médica e médico do Rei, queira contrair matrimónio com a
nossa sobrinha Camilla. Espero que a menina esteja à altura da situação.
Penso
que vou desmaiar, talvez vomitar, o que seria uma catástrofe, respiro pouco de
cada vez muitas vezes, poupo instintivamente todo o ar. Quero a Paca. Marcámos
o casamento para a Páscoa, a Paca irá consigo, o senhor Seabra tem uma
linda casa, um enorme jardim, temos a certeza de que vai ser muito feliz. É
tudo. Pode retirar-se. Mais laissez la
dire quelque chose, Albert! Sim, sim, claro. Está contente? Quer dizer
alguma coisa? Junto as poucas forças que me restam e pergunto, numa voz quase
inaudível: posso levar as minhas bonecas? Ai Nena, Nenita, hija, eu sabia, li
nas cartas, tu és o cordeiro do sacrifício que se entrega ao algoz sem explicações,
o cordeirinho que só aprende na hora de sentir a faca nas entranhas, na hora de
morrer de aflição e de espanto. Tão niña e xá te entregam, xá te casam, xá te
condenam. Mas vou decirte todo, vou ensinar-te o corpo para que não estranhes.
Tão pronto sejas púbere. E isso o que é? Na tua barriguita e na de todas nós,
mujeres, há um baguito de romã que amadurece e Deus manda os seus anjos fazerem
o ninho onde pode ser deixada uma semente. Se a semente não vem, o ninho se
desmancha e suas penas de sangue deixam o corpo da mulher.
E
outra lua e outro nido e lua atrás de lua e mês atrás de mês e nido atrás de
nido, até que a semente venha fecundar o bago de romã. E assim se forma um fruto
de vida que ganhará coração e mãos e tudo. E será um menino ao fim de nove
luas. Quando a boca do teu corpo expelir pela primeira vez sangue abandonado,
serás (que alegria) mujer, (que tristeza) mujer... E quando será isso? Quando
xá estejas casada, por isso devo avisar tu novio que não pode tocar-te pois não
tens ninho onde deixar semente. E porque me tocaria? Ele é médico mas eu não
estou doente. Tão pronto sejas púbere, te ensinarei. Soube mais tarde que a Paca
foi, sem os meus tios saberem, falar com o meu futuro marido ao consultório e
lhe disse, la Nena Camilla todavia no es mujer.
Eu
sei, Paca. Eu sou médico. E não sou um monstro. Saberei aguardar o momento
oportuno. Não precisas de te afligir. A Paca voltou para casa radiante,
bailou comigo: um fandango, Ai Nena, Nenita Nena, no llores bajo la luna, no sufre
dolor ninguna tu granito de granada, tu novio aguarda la noche de tu sangre
abandonada... Beijou-me, eufórica, pôs-me um xaile de franjas ao pescoço, bateu
sapateado viravoltando a cabeça, fazendo saltitar os brincos de prata antiga. De
tudo isto compreendi que me encontrava salva de um perigo que estivera iminente
e tudo se prendia com manobras misteriosas que a natureza urdiria no meu
pequeno ventre. Confiava cegamente na Paca e se ela estava alegre, nada
no mundo poderia ensombrar aquele meu resto de infância» In Rosa Lobato Faria, Os Três
Casamentos de Camila S., Edições Asa, Porto, 3ª Edição, 1997/1999, ISBN
972-41-1904-1.
Cortesia
ASA/JDACT