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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) Ao
ouvir o nome, Lorenzi começou a chorar copiosamente, de alegria, que fique bem
claro. A menina sueca e os pais olhavam para ele, um padre tocado pela emoção
do momento, como eles. Sou o secretário do novo papa. A multidão manifestou-se
alegremente, e ainda mais quando Felici anunciou que o nome escolhido era o de
João Paulo I. Quase ninguém havia alguma vez ouvido falar em Luciani. Tudo que
importava era que tinham um novo papa, nada mais, até verem a figura de Albino
Luciani aparecer na sacada, vestido de branco, a sorrir. Um sorriso que
penetrava o interior das pessoas, que despertava a alma para um estado
letárgico de júbilo caloroso, uma efervescência de humanidade, benquerença e
paz. Depois de Giovanni Battista Montini, o lúgubre Paulo VI, aparecia na
varanda aquele homem, sorrindo como uma criança cheia de sonhos. Após entoar a
bênção Urbi et Orbi, o sol voltou a brilhar na noite.
Desconhecem-se
as razões ou os precedentes que levam grande parte dos directores-gerais das
inúmeras agências secretas estatais espalhadas por esse mundo afora a temerem e
acatarem qualquer directriz traçada por esse idoso de tez enrugada, que firma o
andar com o auxílio de uma bengala encimada por uma cabeça de leão dourada. Todas
as especulações são aceitáveis; porém, podem não passar de ficção perto da
verdade. E esta, embora não esteja ao dispor de ninguém, excepto do próprio, é
sustentada por um fator inabalável e inquestionável: a CIA apoia todas as suas
decisões, chegando até mesmo a emprestar efectivos e divisões inteiras para
patrocinar a organização liderada por aquele frágil idoso de expressão dura.
Claro que tudo isso funciona por dedução. Se a grande e mais ou menos
prestigiada Central Intelligence Agency bate continência a um homem desses,
dispondo-se a ajudá-lo e a colocar seus agentes à disposição dele, não é
necessário fazer mais perguntas sobre o sujeito.
Assistindo-o
de perto, há sempre um homem impecavelmente vestido num casaco negro Armani,
cujo nome também se desconhece, gozando da mesma incógnita nominal do velho.
Onde um estiver com certeza estará o outro, salvo raras excepções em que o
assistente tenha de ir pessoalmente encaminhar alguns assuntos ou eliminar
outros, quando é imperativo que mais ninguém o faça. Quanto ao velho, é costume
vê-lo perambulando pelos extensos jardins da sua villa ou pela cidade, não se
especifica que villa nem que cidade, por motivos que se subentendem; é gente
muito influente essa de quem se fala para que provoquemos sua ira. Há muito não
sai do solo italiano nem visita outras fronteiras. Tempos houve em que
permanecia mais fora da pátria do que desejava; hoje em dia, isso acabou, pois
pode dar-se a esse luxo. As novas tecnologias também ajudam a tomar isso
possível, embora não dispense mão-de-obra de confiança nos locais em que tem
interesses. Tanto melhor, porque nada se assemelha aos ares da sua terra, da
sua amada Itália, da sua cidade e villa em particular, por muito que já tenha
viajado por esse mundo afora.
Nesse dia,
encontramos o velho sentado na esplanada exterior da sua villa, com os olhos
postos no Corriere della Sera e no horizonte longínquo. Dali pode
contemplar um mar de terra verde a perder de vista, que vai muito além das
terras da sua propriedade, até desaparecer por trás de uma colina onde o sol
mergulha, conferindo um tom alaranjado crepuscular que tenta combater, em vão,
a penumbra que ganha terreno a cada segundo que passa. Podia ter sido uma
empregada zelosa, mas não; as luzes do jardim se acenderam devido à presteza
dos vários sensores fotoelétricos espalhados pelo local, que fizeram todo tipo
de cálculos para os quais estão programados e chegaram à conclusão de que a
iluminação não era suficiente para quem quer que estivesse ali. A princípio activam
as lâmpadas lentamente, em harmonia com o pôr-do-sol, uma transição contínua e
amistosa, o sol a se esconder por trás da colina, ao fundo, e as lâmpadas a
fortalecerem cada vez mais seus filamentos até o máximo. O mais absorto nem
reparará que a noite se espraiou e tornou conta do céu, uma vez que a luz que
ilumina o jornal permanece favorável à sua leitura. Mas o velho reparou. Não
que não consiga ler o jornal, isso não está em questão, mas o mar de terra
verde transformou-se numa profundeza escura, salpicada de pirilampos pequenos,
alguns móveis, outros fixos. Nenhuma luz artificial tem poder para iluminar o
mundo. Talvez só a da fé o faça, mas de modo espiritual. Sorri ao pensar nisso.
Ultimamente sua linha de raciocínio descamba muito para o lado da espiritualidade.
Pode começar com algo bem material; contudo, mais cedo ou mais tarde, acaba por
roçar o espiritual, sabe-se lá por quê. É a idade pedindo clemência pelos
pecados da vida. Mas ele não é homem de se vergar e pedir piedade, tampouco é
clemente para com os outros. A vida humana tem apenas o valor da conveniência.
Assim que essa acaba, deixa de ter utilidade, não importando a raça, o credo ou
a idade. E o mesmo diz respeito a ele, apesar da sua longevidade. Quis Deus que
vivesse tantos anos e enfrentasse tantos perigos, dúvidas e frustrações. Foi
tudo obra Dele, todo o sofrimento por que passou e ainda passa». In Luís Miguel
Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.
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