Ensaios
«(…) Quanto ao valor temporal, os imperfeitos
esparziam, tremiam, trepavam, enrolavam
são rigorosamente equivalentes a cobre,
esconde, descobre, põe. A equivalência gramatical entre o presente e o
imperfeito no texto d'Os Lusíadas
vai por vezes ao ponto de chocar, também, a sensibilidade linguística de um
leitor português. Quando Camões escreve
Recebe o Capitão alegremente
o Mouro e toda sua companhia;
dá-lhe de ricas peças um presente,
que só pera este efeito já trazia
usa o imperfeito de acordo com a norma gramatical. Mas, quando, um
pouco adiante, Vasco da Gama diz ao mesmo mouro:
Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação
de mi, da Lei, das armas que trazia
afasta-se da norma, porque se refere às armas que actualmente traz no
barco e que imediatamente depois do seu discurso manda mostrar ao seu
interlocutor. O mesmo desvio em relação à regra se encontra numa outra estrofe
do mesmo episódio, quando Vasco da Gama se escusa de mostrar ao Mouro os
livros da sua Lei:
Deste Deus-Homem, alto e infinito,
os livros que tu pedes não trazia,
que bem posso escusar trazer escrito
em papel o que na alma andar devia.
Se as armas queres ver, como tens dito,
comprido esse desejo te seria;
como amigo as verás, porque eu me obrigo
que nunca as queiras ver como inimigo.
Trazia vale aqui,
evidentemente, por trago, como na
estrofe 64; e, do mesmo modo, devia
vale por deve. O segundo caso ilustra
particularmente bem a infracção à regra, porque, quando se lê que a Lei devia andar escrita na alma, entende-se
que devia andar, mas não anda. No entanto, é o contrário disto que o Gama
diz: ele não traz os livros da Lei, porque ela está escrita na alma, como deve. Notemos ainda que a
equivalência presente-imperfeito acarreta a equivalência entre presente e
condicional. Cumprido esse desejo te seria
significa esse teu desejo será
cumprido, como o mostra o contexto.
A regra de que Camões se desvia neste e noutros
passos d'Os Lusíadas rege a língua
do século XX, como já regia a do tempo de Camões. Não se trata de arcaísmo. É
interessante notar que este desvio é muito frequente nos rimances populares,
quando a rima única impõe longas sucessões de terminações en -ia e -ava. No entanto, Os
Lusíadas estão o mais longe possível da tradição popular e medieval quanto
à sua forma erudita e latinizante. Interessam-nos estes desvios da norma porque
são casos significativos de tendências. Também acontece, evidentemente, que Camões
usa o imperfeito combinado com o perfeito, conformando-se com o uso estabelecido.
E igualmente se encontra, uma ou outra vez, mas sempre como excepção, o uso do perfeito
narrativo (salvo num canto em que ele é de regra), em certos casos talvez por
razões rítmicas. A tendência é, a meu ver, evitar o modo narrativo, e, de
maneira geral, a diversidade de planos temporais, ou, antes, a sequência
diacrónica. Mas conviria atentar também em certos efeitos resultantes do uso
combinado do presente e do perfeito. Tenho de me limitar aqui a um exemplo que
nos dá talvez ideia de um processo camoniano.
Tétis está mostrando ao Gama, diante do globo terrestre,
os vários lugares notáveis do mundo português, e, a propósito, fala de
acontecimentos que nele se hão-de dar depois da viagem do Gama. Chegando
ao reino de Narsinga, põe-se a contar uma história que, ao contrário das
anteriores, está, não no futuro relativo aos nautas, mas num passado longínquo,
visto que se passou com um dos apóstolos, S. Tomé. Começa por apontar o lugar:
Olha que de Narsinga o senhorio
tem as relíquias santas e benditas
do corpo de Tomé, barão sagrado.
In António José Saraiva, Estudos sobre a Arte D’Os Lusíadas, Gradiva
Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-476-2.
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