domingo, 2 de novembro de 2014

A Conquista de Lisboa. 1578 1583. Violência Militar. Comunidade Política. Rafael Valladares. «… a distinguir entre violência destrutiva (cuja finalidade é provocar a morte) e construtiva (a que procura celebrar a vida, como a violência lúdica ou a simbólica) e a não cair na armadilha de identificar mecanicamente…»

Batalha de Alcântara
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Violência. Um fresco pintado em Génova
«(…) Não terá podido ignorar, sobretudo, que aquela guerra provocou milhares de mortos e feridos, talvez poucos em comparação com outras guerras da época, como a de Flandres, ou as de natureza civil e causa religiosa em França, mas com um impacto qualitativo não inferior, quando se pensa que aquela invasão sucedeu num reino que não conhecia guerra no seu interior havia séculos e, além disso, estava já, abalado por uma sucessão de infortúnios como a Grande Peste de 1569, a derrota em Marrocos em Agosto de 1578 e mais outra vaga de peste precisamente em pleno caos político e militar (entre 1579 e 1581). Sendo o país vulnerável pela sua escassez de recursos naturais e demográficos, a crise governamental em que mergulhou desde a morte do rei João III, em 1557, acentuou a desarticulação social e emocional de comunidade, até, aí habituada à estabilidade nas instituições e a uma prosperidade ultramarina que também dava sinais de mudança. Em apenas uma geração, entre 1560 e 1580, toda esta ordem se transtornou, de modo que, quando se deu a extinção da dinastia de Avis, a entronização de outra, qualquer que fosse, foi entendida como o auge de uma ruptura geral do corpo da república, dando lugar à manifestação de conflitos domésticos tão intensos que, por vezes, levaram os vassalos aos limites da revolta social e até à guerra civil.
O objectivo consiste em recuperar a dimensão da violência na guerra portuguesa de 1580 e em avaliar os diferentes impactos relativos às percepções por ela causados no corpo político de um reino teoricamente posto a salvo pelos seus estratos privilegiados e pelas suas instituições. Convém esclarecer, ao falar aqui de violência militar, que descartámos os aspectos que a historiografia castrense do século XIX e parte do XX costumava privilegiar, até à chegada da nova história militar em 1950, ou seja, a táctica e a estratégia dos exércitos, de resto quase sempre tingidos de nacionalismos. Por exemplo, as obras do escritor e político Serafín Estébanez Calderón, do homem da marinha Cesáreo Fernández Duro e do general Julián Suárez Inclán demonstraram a importância do contributo desta literatura, mas também revelaram os seus limites. Hoje são outros os aspectos e, sobretudo, as abordagens da violência bélica e parabélica que o historiador pode aproveitar para reconstituir situações passadas e entender fenómenos que, sob a sua aparência de semelhança com os actuais, se revelarão muito distintos por se enquadrarem em chaves mentais e contextos sociais já desaparecidos.
Nesta matéria, talvez o primeiro problema resida em construir uma definição de violência que, sem deixar de ser complexa, seja também operativa. A sociologia, a antropologia, a psicologia, a biologia, a teologia, a criminologia e a politologia debatem-no há já muitos anos. Os velhos e venerados nomes de Max Weber, Erich Fromm, Sigmund Freud, Norbert Elias ou, mais recentemente, Michel Foucault, surgirão sempre a par das relações entre violência e sociedade. Com eles aprendemos, no mínimo, a distinguir entre violência destrutiva (cuja finalidade é provocar a morte) e construtiva (a que procura celebrar a vida, como a violência lúdica ou a simbólica) e a não cair na armadilha de identificar mecanicamente a presença de gestos violentos com atraso e, correlativamente, a ausência de violência com progresso, sempre que se evite analisar o fenómeno violento a partir do discurso da segurança imposto pelo triunfo do direito penal. Tem sido uma vantagem poder estudar a violência sem a carga moral de outrora e focá-la, em contrapartida, como uma realidade biologicamente enraizada no ser humano, mas culturalmente modificada pela dinâmica social. Para o historiador, a violência (ou agressividade, como preferem dizer os psicólogos sociais) coloca, no mínimo, duas questões de peso: como designá-la e, em consequência disso, como tomar consciência de que com cada termo escolhido para o fazer podemos estar a proceder à sua legitimação. A partir do momento em que a violência contribui para organizar um poder, para mantê-lo ou aumentá-lo, a sua denominação, o modo como nos referimos a ela e a qualificamos, implica um exercício relativo à sua aprovação ou invalidação. Portanto, a violência, distinta do acto violento em si mesmo, constrói-se tanto social como historicamente, na medida em que cada época praticou a sua própria violência e a codificou de maneira diferente.
Neste sentido, a expressão violência militar que estas páginas acolhem foi escolhida para abarcar o mais possível a panóplia de agressões físicas e simbólicas que tiveram lugar entre os vários agentes implicados numa interacção temporal e geográfica muito concreta, a ocorrida no reino de Portugal entre finais da década de 1570 e começos da de 1580. Este período coincide com a implantação na Europa daquela que ficou conhecida como revolução militar, fenómeno que alguns historiadores pensam que teria feito com que a guerra, em geral, e os exércitos, em particular, incidissem sobre a população com uma intensidade muito superior à da Idade Média. É possível, e até provável, que assim acontecesse, mas sem perder de vista que os conceitos de violência que estavam em jogo e as formas que esta revestiu continuaram a obedecer maioritariamente ao código medieval, e que só a partir dele evoluíram. Deste modo, pôde mudar em grau quantitativo o que na essência conservou a sua natureza qualitativa». In Rafael Valladares, A Conquista de Lisboa, 1578-1583, Violência Militar e Comunidade Política em Portugal, Texto Editores, Alfragide, 2010, ISBN 978-972-47-4111-6.

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