1923
«Pierre Teilhard embarca em Marselha, a 6 de Abril de 1923, com destino à China. A partir de
Port-Said surgem novos horizontes e, como todo o viajante que toca pela primeira
vez o Oriente, é presa da sua magia e vai anotando, entre uma escala e outra,
as suas impressões de viajante, 15 de Abril de 1923.
Drante todo o dia deslizámos no golfo de Suez, entre duas
terras prodigiosamente pitorescas e desoladas. O Sinai, maciço de
granito de grés vermelho retalhado, e a costa egípcia, a princípio uniforme e
tabular, depois eriçada de toda a espécie de picos extraordinários, todos por
igual ásperos e nus. Por sobre tudo isto, umas tonalidades de sonho de uma
doçura estranha nestes climas extremos. A leste o mar parecia azul-escuro. A
linha do horizonte desenhava-se com nitidez de gume. E depois, sobre esta faixa
sombria, sem transição, erguiam-se montanhas de um rosa-suave, num vaporoso céu
verde. Ao pôr do Sol, foi a costa ocidental que atraiu a si toda a beleza do
crepúsculo. À medida que o Sol desaparecia num torvelinho de nuvens
incandescentes, as montanhas do Egipto, até então envoltas em bruma, começaram
a passar por todos os tons de violeta possíveis, desde o roxo mais escuro ao lilás
mais transparente. E uma linha inteira de pontas agudas, em forma de dentes de
serra, recortadas no céu dourado, foram os últimos sinais de terra a desvanecerem-se.
Toda esta magia nada era ao pé do que o espírito descobria nestas terras quase
desconhecidas, que quase ninguém visita e a que, talvez por isso mesmo, se
prendem as fases mais misteriosas da nossa história religiosa. Eu gostaria de
desembarcar nesta costa rochosa, não apenas para analisá-la com o meu martelo
mas para tentar ouvir também a voz da Sarça-Ardente. Não terá, porém, já
passado o momento em que Deus falava no deserto, e não compreendemos nos agora
que Aquele que é não se ouve aqui ou
acolá, porque os cimos habitados por Ele não são uma montanha inacessível mas uma esfera mais profunda das coisas?
O segredo do mundo está em toda a parte onde consigamos ver o universo transparente.
17 de Abril.
Outras paisagens, paisagens humanas, desfilam ao mesmo tempo,
ainda mais sedutoras. Como nos dias de guerra, em que tantas confrontações se lhe
ofereceram na familiaridade da vida de bordo, Pierre Teilhard olha, observa, dialoga
com os mais diversos interlocutores. Os espíritos
que se encontram num paquete são espantosamente diferentes entre si: desde o
negro da casa das máquinas, o criado chinês até ao administrador colonial, ao
soldado, ao comerciante, passando pelo missionário. Estes contactos
permitem-lhe avaliar o relevo e os
abismos da camada humana que esse pequeno universo flutuante transporta.
Conversações com o médico de bordo, que muito observara nas suas viagens e de
forma inteligente: russos de todas as categorias, arménios, malgaches,
crioulos... Curiosa e enigmática personagem
que parece ter abordado todas as ciências e todas as experiências. O outro
médico colonial fala-lhe da Indochina e do Chade. Constitui intenso
despaisamento para o antropólogo o espectáculo destas variadas gentes, nestes
quotidianos encontros, porque a alma
humana é algo de infinitamente mais vasto e mais movente do que gostaríamos de
supor. Os professores de Teologia fariam bem em passar todos por este
estágio que estou a fazer aqui. Começo a crer que há uma certa visão do mundo
real tão vedada a certos crentes como o mundo da fé o é aos que o não são. Estes
últimos, os positivistas, os cépticos, espantam-no pela sua incapacidade de
apreender tudo o que ultrapasse o nível experimental, e este sábio místico não
os surpreende menos, mas é curioso, mesmo assim, que com pessoas que não
acreditam em coisa alguma se travem conversações básicas em que são abordados
todos os grandes problemas e em que elas esvaziam o saco quando o homem com
quem dialogam se mostra tão francamente
sincero quanto possível, a sua única táctica. E, nestas permutas de homem
para homem, Pierre Teilhard observa que encontra uma fonte de reacções salutares para o seu próprio espírito». In Pierre
Teilhard Chardin, Lettres de Voyage, 1956, Cartas de Viagem (1923-1939), Portugália
Editora, Lisboa, tradução de Ramos Rosa, 1969.
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