«(…) Para os mais interessados
num turismo preferencialmente histórico, a cidade de Trento ficava a cerca de
vinte quilómetros. Havia um autocarro que levava os eclesiásticos, diariamente,
ao início da manhã e da tarde, para a cidade. Podiam visitar a Piazza Duomo,
onde ficava a catedral de San Vigilio, o santo padroeiro da cidade. Não
deixavam de aí entrar e, no corredor direito, visitar a capela do Crucifixo e
ajoelharem-se perante a cruz de madeira que continha os itens promulgados pelo
célebre Concílio. No presbitério da catedral ocorreram algumas sessões dessa magna
reunião do século XVI que durou dezoito anos. Mas havia muito mais para ver.
Toda a cidade era um museu ao ar livre que deleitava os olhares dos amantes da
história e se perdia nos confins dos tempos.
No fim do telefonema, o
secretário pessoal mencionou, em nome do Santo Padre e de Deus, que estavam
certos que a prioresa corresponderia com o habitual nível de excelência com que
sempre presenteara os dignitários da Santa Sé. E assim seria. Nessa mesma
noite, três irmãs, entre as quais Bernarda, foram dispensadas das Completas para procederem à limpeza do aposento
principal. Os quartos do terceiro andar, à excepção do da prioresa e da cónega,
eram limpos semanalmente, pois eram ocupados poucas vezes e, por isso, não
requeriam manutenção diária como os outros. A chegada iminente de um monsenhor,
com a venerável avalização do Santo Padre e do secretário, mudava os ditames
ordinários.
Limparam o chão, não só do quarto
mas de todo o corredor do terceiro piso, e estenderam lençóis térmicos na cama
grande. Providenciaram toalhas para todas as funções, roupões, loções e todo o
género de fluidos para o bem-estar do corpo. Sabiam muito bem que os pregadores
do espírito prezavam os aconchegos terrenos. Os aposentos, apesar de sóbrios,
tinham quarto de banho privativo e escritório. Já acolheram cardeais,
arcebispos, núncios e até um Papa, em tempos idos. A meio da madrugada, o
quarto estava pronto para receber o enviado de Sua Santidade.
O reverendo monsenhor Stephano
Lucarelli chegou dois dias depois do telefonema, na quinta-feira ao início da
tarde. Estacionou o carro na garagem interior, própria para hóspedes especiais.
Era mais jovem do que a prioresa e a irmã Bernarda imaginavam, provavelmente na
casa dos 40 anos, mas a faixa e os filamentos violetas agarrados à batina preta
não deixavam margem para dúvidas sobre a posição que ocupava. O nevão dos
últimos dias, que prendera os hóspedes junto às lareiras das salas de convívio
e de jogos, ou na agradável biblioteca, acalmara na noite anterior, daí que
quase todos se tivessem ausentado, pela manhã, para apreciar os prazeres da
neve e da, novamente adquirida, liberdade. Saíram com esquis, trenós, bolas,
sorrisos e expressões infantis nos rostos. Os poucos que decidiram permanecer
no aconchego do retiro não viram o recém-chegado prelado italiano. Foi
imediatamente conduzido pela irmã Bernarda aos seus aposentos pela entrada
privada nas traseiras do edifício, longe de todos os olhares.
A
prioresa encarregara Bernarda de prover todas as necessidades do reverendo
monsenhor, a qualquer hora do dia ou da noite, durante a sua estada. A jovem
observou o desconhecido prelado. Tão novo e já com um cargo tão importante. Um
competente servidor da Igreja, seguramente. Carregava uma pequena mala de
quatro rodas pela pega. Não parecia trazer muita roupa. Provavelmente, o
repouso ordenado pelo Santo Padre seria breve. Como solicitado, o acesso aos
aposentos só se poderá fazer por esta via, informou a freira, em italiano,
quando subiam as escadas até ao terceiro piso. Obrigado, agradeceu o prelado,
em alemão. A sua voz era firme, segura de si, varonil e, no entanto, conservava
também uma certa doçura, pensou a jovem quando abriu as portas dos aposentos. Espero
que o quarto seja do seu agrado. Lucarelli entrou na divisão e pousou a mala em
cima de uma arca que estava encostada a uma parede. Olhou em redor. Abriu a porta
do quarto de banho, depois a do escritório. A inspecção levou apenas alguns
instantes. Perfeito, sentenciou. Está então ao meu serviço, correcto? A irmã
anuiu, baixando a cabeça duas vezes. Sim, reverendo monsenhor… Tomo o
pequeno-almoço às seis e meia da manhã, recitou, sempre num alemão polido. Café
e pão. Nada mais. Não almoçarei durante a minha estada. O jantar deve ser servido
às seis e meia. Deixe ambas as refeições à porta do quarto. A irmã entregou-lhe
uma sineta que deveria ser utilizada caso o prelado necessitasse dos seus
serviços. Fê-la tinir antes de lha passar para a mão. Como se chama?, perguntou
ele, com um olhar penetrante. Bernarda, reverendo…» In Luís Miguel Rocha, A Filha do
Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.
Cortesia de PEditora/JDACT