Ditoso cavaleiro. Esposo conformado
«(…) Após ter conquistado Arzila, o exército pôs-se em
marcha na direcção de Tânger, cinquenta quilómetros a noroeste da praça
conquistada. A cidade inexpugnável, verdadeira desonra da bravura lusitana, não
cedia nem sequer tremia. Os portugueses já iam em cinco tentativas para
conquistá-la, todas frustradas, seria desta vez que conseguiriam? Com o
príncipe a aconselhar o rei, tudo era possível. Na verdade, quando chegaram próximo
da cidade, vieram dizer-lhes alguns almogáveres
(milícia a pé ou a cavalo que fazia surtidas na linha da frente, comandada
por um adail; eram homens de grande coragem e pouca piedade), que o rei mandara
à frente que podiam ir sossegados, nas calmas, porque para entrar em Tânger nem
sequer era necessário partir os ferrolhos, visto que a cidade estava airosa e
de portas abertas. As notícias pareciam boas, mas para o rei foram
decepcionantes: … quem é que reconheceria
o valor da alma lusa, sem os seus combatentes matarem e morrerem pela causa
cristiana?, frustração que o rei repetia dentro da consciência. Tinha razão
Afonso V. O tio Henrique fora derrotado diante das muralhas de Tânger, o duque
de Viseu, infante Fernando, seu irmão, tentou e não conseguiu, e ele próprio já
lá tinha sido derrotado. Agora aparecia-lhe Tânger de portas abertas, sem
moradores, e ainda por cima tudo escaqueirado, a arder, o que significava ter
de transformar um exército de garbosos cavaleiros em sapadores bombeiros. Eram
pensamentos desprezíveis, o rei queria vencer mas a lutar, assim não executava
por completo o que ali viera fazer.
Mas eis que a seu lado alguém pensa de modo diferente. O rei
olha à sua volta, procura os olhos do príncipe, fixa-os, esperançado em que
através deles as palavras certas se soltem. E o que vê o rei? Um olhar pragmático,
o entendimento de quem acha preferível receber tudo sem pagar nada. É este
sentimento prático que João procura
transmitir ao pai quando este argumenta a favor da guerra: eis um contratempo,
meu filho; como acederemos à glória sem luta? Pensai como eu, senhor. Mais vale
recebermos do que pagarmos. As vidas que estávamos dispostos a ceder em nome de
Deus, levamo-las inteiras para Portugal. Isso é mais importante do que
dividirmos os mortos de um e do outro lado. E a honra, meu filho? Seremos
nós acolhidos por Deus sem derramarmos o sangue dos seguidores de Mafamede? Não
vos martirizeis! Se eles fogem é porque de vós têm medo. Quereis prova mais
irrefutável da vossa valentia? Bem aconselhado, Afonso V esteve em Tânger a
desfrutar do seu sucesso cerca de dezassete dias: mandou cartas ao papa a confirmar
a conquista, nomeou o bispo, o capitão que lá deveria exercer o poder por si,
quem ficaria a defender a praça, quem regressaria, a forma de suster a cidade
de víveres e defesas.
Está mais do que visto que o príncipe se impunha ao pai e a
todos. As suas ideias antecipavam-se às demais, impunha, não aceitava
competidores. O monarca só tinha de decidir. No Conselho do Rei, quando algum
dos conselheiros interpunha soluções diferentes das suas, João destruía-lhe a argumentação de forma directa e por vezes
ameaçadora, aproveitando a confiança que cada vez mais o pai depositava nele.
Tão jovem, por volta dos dezassete anos, Afonso V entregou-lhe sem receio toda
a governação das cousas d’África,
assim como as rendas da alfândega de Lisboa e da Guiné. Na posse dos negócios
da expansão, João impôs logo medidas
ousadas. Persuadiu o pai a limitar o comércio de certos produtos, desvalorizou
os que tinham menos rentabilidade, proibiu algumas actividades independentes.
Sem sua licença, ninguém negociaria malagueta e outras especiarias, nem gatos d’Algalea, nem em Unicórnios. Também nos descobrimentos
o príncipe consolidou um novo modelo. Vendo que as viagens não tinham a sistematização
que lhe parecia mais adequada, confirmou o contrato com um cidadão honrado de
Lisboa, Fernão Gomes, para que este se empenhasse, todos os anos, em avançar
cem léguas pela costa africana abaixo.
No capítulo das relações diplomáticas entre os três reinos
ibéricos, Portugal, Castela e Aragão, dias difíceis estavam para vir. Por
enquanto a diplomacia fazia um esforço para moderar as tensões entre os três
reinos peninsulares, envolvidos em questões de sucessão. Todavia, não era por
isso que Afonso V não levava até ao fim a promessa que tinha feito ao falecido
irmão. O contrato de casamento estava confirmado, faltava unir os jovens
esposos na mesma cama para que o reino tivesse continuidade. Foi assim que, em 1472, o príncipe João tomou de corpo e alma
a princesa dona Leonor. Ela tinha catorze anos, ele mais três, maturidade
suficiente na época para gerar bons príncipes. O ajuntamento fez-se em Beja, onde a mãe de dona Leonor, a infanta
dona Beatriz, governava o ducado, alimentando paixões reais entre jovens de beleza
sem igual. Não vemos qualquer razão para duvidar da formosura da princesa dona Leonor,
virgem também seria, fazendo do par um casal encantador. Já dissemos que o
cronista via no príncipe múltiplas qualidades, tinha ele tudo de bom, e as
mãos, que em dias de ajuntamento
fazem muita falta, tinha-as compridas,
alvas e formosas». In Jorge Sousa Correia, As Sombras de D.
João II, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-155-0.
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