Os
novos reis. O casamento de Janeiro
«(…)
Uma alma de adulto, de homem seguro do seu compromisso perante o céu, de
príncipe consciente do seu papel entre o seu povo e Deus, exprimia-se pela boca
do adolescente. O novo rei tomava os familiares, os seus próximos, os altos
funcionários do reino, os barões e os prelados, a população de Iorque e toda a
Inglaterra por testemunhas do amor que jurava a Filipa. Os profetas que ardem
no amor de Deus, os homens que conduzem as nações apoiados numa convicção forte
sabem contagiar as multidões com a sua fé. O amor publicamente afirmado também
tem esse poder, provoca a adesão de todos à emoção de um só. Não havia entre a
assistência uma única mulher, fosse qual fosse a sua idade, recém-casada ou
esposa enganada, viúva, virgem ou avó, que não se sentisse nesse momento no
lugar da noiva, um único homem que não se identificasse com o jovem rei. Eduardo
III unia-se a tudo o que havia de feminino no seu povo, e era todo o seu reino
que escolhia Filipa por companheira.
Todos
os sonhos da juventude, todas as desilusões da maturidade, todos os arrependimentos
da velhice se dirigiam aos dois como outras tantas oferendas que brotassem de
cada coração. Ao fim do dia, nas ruas sombrias, os olhos das noivas iluminariam
a noite, e mesmo os velhos casais desunidos dariam as mãos depois da ceia. Se
desde tempos imemoriais os povos se precipitam para o espectáculo dos
casamentos dos príncipes é para viverem assim por procuração uma felicidade
que, por ser exposta de tão alto, parece perfeita. ... till death do us part... até que a morte nos separe... Os
presentes sentiram um nó na garganta. A praça suspirou em uníssono, com uma
surpresa triste e quase com reprovação. Não, não se devia falar de morte num momento
assim. Não era possível que aqueles dois jovens estivessem destinados a sofrer a
sorte comum, não era admissível que também eles fossem mortais. ... e por tudo isto
te juro fidelidade...
O jovem rei sentia respirar a multidão,
mas não a olhava. Os seus olhos de um azul-pálido quase cinzento, de longas pestanas,
não se afastavam um instante da jovem vermelhusca e roliça, embrulhada em véus e
veludos, a quem fazia o seu voto. Filipa de Hainaut não se assemelhava de
maneira nenhuma a uma princesa de conto de fadas. Não era sequer muito bonita. Tinha
os traços de gorducha dos Hainaut, nariz breve, pescoço curto e um rosto
coberto de sardas. Não era uma figura especialmente graciosa, mas pelo menos
não era afectada nem procurava assumir uma atitude majestosa, que não lhe
conviria. Privada dos adornos reais, poderia ter sido confundida com qualquer rapariga
ruiva da sua idade. Em todas as nações do Norte eram às centenas as jovens como
ela, o que reforçava a ternura da multidão por Filipa. Fora escolhida pelo
destino e por Deus, mas no essencial não era diferente das mulheres sobre quem reinaria.
Todas as ruivas gorduchas se sentiam promovidas e honradas. Ela própria estava comovida
ao ponto de tremer. Baixava os olhos como se não conseguisse suportar o olhar
do marido. Àquilo por que estava a passar era quase demasiado belo. Tantas coroas
à sua volta, tantas mitras, tantos cavaleiros e damas que vislumbrava no interior
da catedral, alinhados por trás dos círios como eleitos no Paraíso, e todo aquele
povo à sua volta… Ia ser rainha, e fora escolhida
por amor!
Ah!
Como tencionava mimar, servir, adorar o bonito príncipe louro, de longas pestanas,
mãos finas, que chegara como por milagre ano e meio antes a Valenciennes,
acompanhado por uma mãe exilada que ali fora pedir ajuda e protecção! Os pais tinham-lhes
dito que fossem brincar no jardim com as outras crianças e ele apaixonar-se por
ela e ela por ele. E ele agora era rei e não a esquecera. Com que felicidade
lhe dedicava a sua vida! Apenas receava não ser suficientemente bela para lhe agradar
para sempre, nem suficientemente instruída para poder acompanhá-lo. Apresentai,
senhora, a vossa mão direita, disse-lhe o arcebispo primaz. Filipa apresentou
uma pequena mão roliça, que estendeu com firmeza com os dedos bem afastados. Eduardo
olhou maravilhado aquela estrela rosada que se lhe oferecia». In
Maurice Druon, 1966, Os Reis Inimigos, A Flor-de-Lis e o Leão, tradução de
Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2007, ISBN 978-972-42-3926-2.
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