Ditoso cavaleiro. Esposo conformado
«(…) Ainda assim, em relação à jovem esposa, João ia mais adiantado, pois as saídas
nocturnas davam-lhe alguma experiência sobre os assuntos de alcova. E não seria
melhor assim? Com dezassete anos feitos, sabedor dos recantos femininos, o
príncipe não passaria melhor as encruzilhadas do amor guiado pelo saber e pelas
alvas, formosas e compridas mãos? Só havia um senão! O jovem príncipe
era fanhoso, o ar saía-lhe muito mais pelo nariz do que pela boca,
trazendo, quem sabe, algum constrangimento aos noivos na hora das palavras. Mas
teriam eles assim tanto para dizer um ao outro? Ver e sentir era o mais
importante, quem é que se punha a fazer discursos nasalados na noite de
núpcias? Além disso, a princesa estaria há muito instruída na arte de amar sem
reclamar, o que, com segurança, daria à primeira noite do casal todos os
ingredientes para fazer o que era preciso. Acima de tudo institucionalizar a
real união através da fecundação. Pouco tempo se demoraram em Beja. O príncipe
gostava pouco de sentir pressão sobre si, fosse ela dos encargos que tinha no reino
ou dos que se lhe apresentavam no feudo da sogra, e vai daí, rumou a Évora, um
sítio onde se sentia à vontade para seduzir a noiva.
El Hombre
Na década de setenta do século XV João II foi arrastado pelo
pai nas lutas pela sucessão em Castela, conflito que se transformou numa guerra
ruinosa para Portugal. Henrique IV de Castela, um rei fraco, viu-se contestado
por alguns nobres da maior importância, sendo afastado do poder com o
admissível argumento de que a filha, dona Joana, não era dele mas do
valido, Beltrán La Cueva. A mãe da princesa, irmã de Afonso V, também Joana de
nome, foi a segunda mulher de Henrique IV aos dezasseis anos. Temos aqui
muitas Joanas, faz alguma confusão, mais ainda o anátema de homem impotente
que pesava sobre Henrique. Os nobres continuavam a contestar a legitimidade de
dona Joana, e ainda por cima havia a outra, dona Isabel, princesa de carácter
indomável, meia-irmã de Henrique IV. Até porque esta infanta desprezava as
alegadas aventuras da cunhada pelas câmaras almofadadas do paço. Nas relações
fraternais, como em tudo o resto, metade é menos que pleno, mas não seria por
isso que Henrique IV não encontraria na meia-irmã uma opositora mais firme do que
até então os nobres tinham sido.
E lá vem de novo o argumento de que dona Joana não era filha
do rei. De facto, Henrique IV já tinha sido casado com uma princesa navarrina,
dona Blanca, tendo o bispo de Segóvia declarado o casamento nulo, preocupado
com as disfunções erécteis do monarca. Tão contestada paternidade fez Henrique IV
ceder. No Tratado de Toros de Guisando,
aceitou nomear a irmã Isabel sua herdeira, desde que fosse ele a decidir com
quem ela se casaria. Em troca, aceitava divorciar-se de dona Joana, tanto mais
que a mulher reincidira, já não com Beltrán, mas com outro fidalgo de quem tivera
gémeos. Que fazer então? Primeiro arranjar um noivo para a irmã que não o contestasse.
Pensou bem, com acerto e ponderação, recaindo a escolha em Afonso V de
Portugal, quem havia de ser, nem mais nem menos o seu cunhado. O rei terá visto
em Afonso V o homem de armas capaz de o proteger da nobreza, amansar a irmã, e
assim mesmo, unificar a Península Ibérica. Para a filha Joana, e para que a
união das duas coroas se reforçasse, entendia Henrique IV que ela deveria
casar-se com o príncipe João de Portugal. Era uma boa jogada, e se o seu
pensamento se realizasse, Henrique IV poderia reformar-se descansado, e quem sabe,
viver feliz com dona Joana sua mulher, a quem estava disposto a perdoar. A
rainha era uma beldade, nas festas e nos actos solenes reluzía, dava-lhe o
brilho que ele não tinha, que mal tinha se à boca pequena dissessem que a coroa
custava a entrar-lhe na cabeça.
Afonso V achou interessante o que Henrique IV lhe propunha.
Era primo de Isabel em segundo grau, coisa que não atrapalhava nada a união
matrimonial, e, além disso, lá por a jovem princesa ter menos dezanove anos que
ele, até lhe fazia lembrar a primeira mulher que tanto amara, também ela
Isabel, como a de Castela. Se não bastassem estes ingredientes, Henrique IV
permitia-lhe tudo: dinheiro, ouro, apoios em Portugal e em África, uma espécie
de cheque em branco que Afonso V preencheria como quisesse, desde que viesse
auxiliá-lo contra os nobres revoltosos. A ideia era para o monarca português um
mar de sucessos. Via no casamento uma possibilidade real de obter as duas
coroas, tornar-se rei de quase toda a Península Ibérica, por isso se aprumou. Ultrapassou
o reumático que começava a emperrar-lhe as articulações, reparou quanto
possível o que já tinha excesso de uso, mandou refazer o guarda-roupa, disposto
a trazer dona Isabel para Portugal. Não era o príncipe galhardo e esbelto que
fora, mas que mal tinha, o mais importante era ter a capacidade de fertilizar o
colo da princesa, o resto não tinha qualquer importância. Verdade que tinha
engordado uns bons quilos, o cabelo já só mal lhe tapava os parietais e
sobretudo tinha descurado a sua imagem de homem elegante e bem vestido, mas
mesmo quanto a isso, quem sabe, uma esposa jovem não lhe daria um segundo
fôlego». In Jorge Sousa Correia, As Sombras de D. João II, Clube do Autor,
Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-155-0.
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