«(…)
Era difícil acreditar que aquele jovem louro e rosado, tão atento ao seu
serviço, tão visivelmente animado pelo desejo de desempenhar bem a sua tarefa,
tivesse aceitado trair. Fora sem dúvida impulsionado por motivos que não o
dinheiro. Gerardo Alspaye, tenente da Torre de Londres, desejava, como muitos oficiais,
xerifes, bispos e senhores, ver a Inglaterra livre dos maus ministros do reino.
A sua juventude fazia-o sonhar com um papel heróico e, além disso, odiava e
desprezava o seu superior, o governador Seagrave. Este era um vesgo de rosto
flácido, bebedolas e desmazelado, que devia o cargo apenas à protecção desses
mesmos maus ministros. Praticando abertamente os costumes que também o rei
Eduardo alardeava perante a corte, o governador servia-se da própria guarnição
como de um harém. As suas preferências iam para os jovens altos e louros e por
isso a existência do tenente Alspaye, um homem devoto e alheio ao vício,
tornara-se um inferno para o superior. Depois de ter rejeitado o assédio amável
do governador o tenente sofria agora a sua perseguição constante. Não havia
tormento nem humilhação que Seagrave não lhe impusesse. O vesgo tinha requintes
de malvadez. Naquele mesmo instante, ao passar revista aos homens, cobria o seu
subordinado de sarcasmos grosseiros por causa de ninharias, por qualquer coisa
desalinhada, por uma pequena mancha de ferrugem numa faca, por um corte
minúsculo no couro de uma aljava. O seu único olho parecia apenas ver defeitos.
Apesar
de ser dia de festa, em que era costume os homens serem poupados aos castigos,
o governador deu ordens para que três fossem imediatamente chicoteados devido
ao mau estado do seu equipamento. Um sargento foi buscar os chicotes. Os homens
castigados tiveram de baixar os calções à frente de todos os companheiros,
ainda alinhados. O governador pareceu apreciar o espectáculo. Se a guarda não
começar a andar mais aprumada, Alspaye, o próximo és tu, disse ele. Em seguida,
toda a guarnição, à excepção das sentinelas, se dirigiu para a capela a fim de
ouvir missa. As vozes rudes e desafinadas chegavam aos ouvidos do prisioneiro,
à espreita por trás das grades. Esteja
pronto hoje à noite... O antigo delegado do rei na Irlanda não conseguia deixar
de pensar que ainda essa noite poderia vir a ser livre. Tinha pela frente um
dia inteiro a esperar, a sonhar e talvez também a recear. A recear que Ogle
fizesse algum disparate ao executar o plano que haviam preparado, que Alspaye,
no último instante, viesse a cair nele... Um dia a prever e a imaginar todos os
obstáculos fortuitos, todos os elementos do acaso que poderiam fazer fracassar
uma evasão.
Mais vale
não pensar no assunto, acabou por dizer a si mesmo, e convencer-me de que tudo
correrá bem. As coisas nunca acontecem como as imaginamos. Mas o seu pensamento
voltava às mesmas preocupações. Haverá sentinelas nos caminhos da ronda... De
repente deu um salto para trás. O corvo avançara dissimuladamente ao longo da
parede e só por pouco dessa vez não conseguira apanhar o olho do prisioneiro. Ah!
Eduardo, Eduardo! Agora é demais, disse Mortimer entre dentes. E, se devo
estrangular-te, será hoje. A guarnição acabava de sair da capela e entrava no
refeitório para a comezaina tradicional. O chaveiro apareceu à porta da cela,
acompanhado de um guarda encarregado da refeição dos prisioneiros.
Excepcionalmente, a sopa de favas vinha acompanhada de um pouco de carne de
carneiro. Tentai levantar-vos, meu tio, disse Mortimer. E privam-nos até mesmo
da missa, como se fôssemos, respondeu o velho lorde.
Obstinou-se
em comer sobre sua tábua, mal tocando, aliás, na sua porção. Come a minha
parte, precisas mais dela do que eu , disse ele ao
sobrinho. O chaveiro se retirara, e os prisioneiros não teriam visitas até a
noite. Então, meu tio, estais realmente resolvido a não me acompanhar?, perguntou Mortimer. Acompanhar-te
para onde, meu rapaz? Não se foge da Torre. Ninguém
jamais conseguiu tal coisa. Também não adianta rebelar-se contra seu rei.
Eduardo não é o melhor soberano que a Inglaterra já teve, certamente, e seus
dois Despenser bem mereciam estar no nosso lugar. Mas não escolhemos nosso rei,
servimo-lo. Eu não deveria
ter-vos ouvido, a Tomás
Lancastre e a ti, quando tomastes armas. Porque Tomás foi decapitado, e nós,
onde estamos... Era a hora em que o tio, depois de comer alguns bocados,
consentia em falar, com voz monótona e triste, repassando,
aliás, os mesmos assuntos que o sobrinho vinha ouvindo havia dezoito meses.
Nada restava, aos sessenta e sete anos, naquele Mortimer, o Velho, do belo homem nem do grande senhor que tinha sido famoso
pelos fabulosos torneios realizados no Castelo de Kenilworth e dos quais três
gerações ainda falavam. Seu sobrinho em vão se esforçava por acender algumas
brasas no coração daquele ancião exausto, cujas mechas brancas pendiam na
penumbra» In
Maurice Druon, Os Reis Malditos, A Loba de França, 1965, tradução de Helena
Ramos, Círculo de Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.
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