1553. Whitehall
«(…) Mestre Shelton queria que eu
fosse o seu sucessor, depois que a velhice ou a doença exigissem a sua
aposentação. Não era papel a que eu aspirasse em particular, sobrecarregado como
estava com as cansativas obrigações domésticas para as quais lady Dudley não tinha
tempo nem inclinação pessoal. Embora fosse um futuro bem melhor do que aquele a
que alguém da minha posição podia almejar, achava preferível manter-me um ajudante
de estábulos a tornar-me num lacaio privilegiado mas condenado a aguentar os
caprichos dos Dudley. Aos cavalos, pelo menos, eu compreendia; já o duque e a
sua mulher eram-me estranhos em todos os sentidos. Ainda assim, não devia mostrar-me
ingrato. Inclinando a cabeça, murmurei: será uma honra se algum dia for tido como
digno de um tal cargo. Um sorriso áspero, tão mais surpreendente por ser tão raro,
iluminou a expressão de mestre Shelton. Não me digas... Era o que eu achava. Bom,
nesse caso, vamos ter de fazer por isso, não é verdade?
Sorri-lhe de volta. Ser escudeiro
de lorde Robert era já um desafio de peso, mesmo sem ter de me preocupar com a possibilidade
de um futuro cargo de administrador. Embora não visse o terceiro filho mais velho
do duque há anos, ele e eu éramos próximos em idade e tínhamos passado a infância
juntos. Na verdade, Robert Dudley sempre fora o meu tormento. Já em pequeno, era
o mais bonito e talentoso da prole dos Dudley, bem-sucedido em tudo aquilo a
que se dedicasse, fosse o tiro ao arco, a música ou a dança. Alimentava também um
orgulho desmedido na sua superioridade; era um tiranete que se deliciava a liderar
os irmãos em alucinadas caças ao enjeitado.
Por mais que tentasse esconder-me ou por mais ferozmente que eu me batesse ao
ser descoberto, Robert conseguia sempre deitar-me a mão. Obedecendo-lhe, o seu numeroso
bando de irmãos ia mergulhar-me nas águas sujas do fosso ou então deixava-me pendurado
sobre o poço do pátio até os meus gritos se transformarem em choro e a minha
querida dona Alice vir a correr salvar-me. Passava a maior parte do tempo a subir
velozmente às árvores ou então a esconder-me. aterrorizado, pelos sótãos. Até que
Robert foi chamado à corte para ser o pajem do jovem príncipe Eduardo. Depois
que os seus irmãos foram também chamados a ocupar cargos semelhantes, descobri uma
nova e imensamente bem-vinda liberdade da sua tirania.
Mal podia acreditar que estava agora
a caminho para ir servir Robert, e por ordem da sua mãe, nada mais, nada menos.
Mas claro que as famílias nobres não acolhiam os desafortunados como eu apenas
por caridade; sempre soubera que iria chegar o dia em que seria chamado a pagar
a minha dívida. A minha expressão deve ter traído os meus pensamentos, porque mestre
Shelton aclarou a garganta e, algo desajeitadamente, disse: não te preocupes, agora, tu e Robert são dois
homens; tem atenção aos modos e faz o que ele mandar e tudo te correrá bem, vais
ver. Em mais uma rara demonstração de sensibilidade, estendeu o braço e afagou-me
o ombro. Dona Alice orgulhar-se-ia de ti. Ela sempre achou que haverias de ser alguém.
Senti um aperto no peito. Vi-a na minha mente, a apontar-me o dedo enquanto o seu
bule de chá fervia na lareira, e eu ali sentado, a boca e as mãos peganhentas de
compota acabada de fazer, olhando-a, embevecido. Deves estar sempre preparado
para acontecimentos importantes, Brendan Prescott, recomendava ela. Nunca sabemos
quando vamos ser chamados a destacar-nos de entre os nossos.
Desviei o olhar, fingindo estar a
ajustar as rédeas. O silêncio alongou-se, interrompido apenas pelo bater
compassado dos cascos na estrada de pedra coberta de lama seca. E então, mestre
Shelton disse: espero que a tua libré te sirva. Não te fazia mal nenhum pores alguma
carne nesses ossos, mas tens boa postura. Tens andado a praticar com o bordão,
como eu te ensinei? Todos os dias, respondi, forçando-me a erguer o olhar.
Mestre Shelton nem imaginava o que mais eu andara a praticar naqueles últimos anos.
Fora dona Alice quem me ensinara a ler. O seu era um caso excepcional: uma filha
de mercadores que recebera instrução mas que enfrentara dificuldades; aceitara um
lugar ao serviço dos Dudley para, tal como gostava de dizer, conservar a alma e a carne juntas. Dizia-me sempre
que o único limite para a nossa mente é aquele que nós mesmos lhe impomos. Após
a sua morte, eu jurara prosseguir com os estudos em sua memória. Mostrava-me de
tal maneira entusiástico na presença do monge de hálito nauseabundo contratado por
mestre Shelton que, antes que se desse conta, já ele me estava a explicar as complexidades
de Plutarco. Era frequente eu passar a noite acordado a ler livros que ia furtar
à biblioteca dos Dudley». In CW Gortner, O Segredo dos Tudor, 2011,
tradução de Miguel Romeira, 20/20 Editora, Topseller, 2014, ISBN
978-989-862-643-1.
Cortesia de Topseller/20/20Editora/JDACT