«Um não sei quê
que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê». In
Luís de Camões
«(…) Ao
princípio achávamos que era apenas uma coincidência, Pedro e Inês e os seus
amores contrariados, depois, com o decurso dos acontecimentos e o progresso da
minha loucura comecei a pensar que eu devia ser a reencarnação de Pedro I, o Cru, mas agora tenho a certeza de que
sou o próprio rei, o que não descansa, o que não dorme, o que arrasta a amada
pelas noites fantasmagóricas do seu reino, o que manda acender fogueiras para
aquecer-lhe o corpo gelado, pela morte, segredam uns, pela paixão perdida,
afirmam outros. Não me juraste tu, Inês, que nada conseguiria separar-nos? Como
puderam os esbirros de meu pai pensar que te matavam, que matavam este amor sem
fronteiras, sem tempo, sem espaço, materializado de onde em onde na história,
na eternidade, no coração dos homens? Somos, para sempre, da vida e da morte,
para sempre, para sempre, para sempre, somos senhores do tempo, escravos do
tempo, a droga que me enfiaram nas veias envolve-me agora nos seus tentáculos
quentes e sábios, leva-me pelas ruas da eternidade, por onde é dantes, é
depois, é agora, passado e futuro onde perenemente te encontro, te amo, te
venero e te conduzo à morte e enlouqueço.
Uma manhã igual
a todas as outras. O café com leite pouco quente, a taça da compota besuntada
do lado de fora, a manteiga dura, impossível de espalhar no pão fresco. Não
quero começar o dia a ouvir falar do meu mau feitio por isso finjo que como
pouco só porque tenho pressa. Não me apetece ver a Constança com um roupão que
já fez a sua época, dei-lhe um novo nos anos dela mas insiste em vestir sempre
o mesmo, fica desmazelada, fica feia, fica mais magra, vem atrás de mim a pisar
as manchas de sol de Inverno que as janelas desenham no encerado da casa de
jantar, depois no da sala, que atravesso para apanhar as chaves que costumo
largar no prato azul de porcelana antiga junto à porta da entrada. São os anos
da minha tia, e sabes que ela não gosta de servir o jantar depois das nove. Se
te atrasares não posso esperar por ti, estou farta de fazer tristes figuras por
tua causa. Hás-de querer tomar banho, hás-de querer mudar de fato e podias
mandar a tua secretária telefonar à florista, porque o presente que eu lhe
comprei é um bocado simplório. Pedro, estás a ouvir.
Não, não estou a
ouvir. Agora não estou com cabeça para te aturar. Liga-me mais tarde, pode ser
que eu perceba qual é a tua invenção do dia para me chateares. Anos da tua tia
Mila, parece-me bem que não. Que não quê, Pedro, que não quê, mas eu já fechei
a porta, já me meti no carro, já estou a sair o portão e a pensar que daqui até
Lisboa vou demorar horas, ou saio às sete da manhã de Cascais ou apanho uma
fila interminável de pára-arranca. Tenho que pensar seriamente em arranjar um
apartamento pequeno em Lisboa, perto do escritório, para evitar este calvário
do trânsito, estas horas perdidas a ver crescer a manhã, agarrado ao volante e
ao telemóvel, igual a todos os outros habitantes do formigueiro, atrás, à
frente e aos lados. Dona Zilda, ligue à minha mulher, por favor, acho que ela
precisa de qualquer coisa da florista, diga ao doutor Almeida que não marque a
reunião com a agência sem eu chegar, e se o meu pai, ai o meu pai não está,
então okay, eu depois falo com ele.
Um dia que
parecia igual a todos os outros, em que me arrependi pela milionésima vez de
ter feito a vontade ao meu pai e ter ido trabalhar para a firma para
compensá-lo um pouco do muito que o contrariei por ter estudado pintura em vez
de economia ou direito, Belas-Artes em vez de um curso sério, desses que servem
para administrar empresas e aumentar fortunas. Cheguei irritado, em vez de
dizer bom dia, pedi um café sem me deter, como os magnatas dos filmes
americanos. A dona Zilda e a Joana do computador ainda se ergueram das cadeiras
com recados, assuntos pendentes, mas já tinha fechado a porta fazendo jus à
minha reputação de intratável, bruto e mal-agradecido. A dona Zilda entrou com
pezinhos de lã, senhor doutor o cafezinho, se o senhor doutor me desse licença
precisava que me ouvisse um instante, um minutinho só». In Rosa Lobato Faria, A Trança de
Inês, Círculo de Leitores, cortesia de ASA Editores, 2005, ISBN
978-989-660-034-1.
Cortesia
CL/JDACT