De acordo com o original
«(…) E piamente, como
fanatico, achava verosimil a lenda da burra que fallou, historia que uma tarde,
passando, o abbade lhe contara. Tanto que mais de uma vez, dando ao burro as
boas-noites, extranhou com certo desgosto que o Sultão lhe não respondesse: boas noites! Mas o demonio, que sempre
as arma, armou-lh’a tambem um dia! Foi ao cortelho, de manhã cedo, e não
encontrou o burro. Ficou parvo! Poz-se a mirar, espantado, a loja que lhe
pareceu enorme, e além de enorme,-gelada... Ó Josefa! Josefa! entrou de gritar
da rua. Ó Josefa! A mulher assomou á janella, sobresaltada. Queres apostar que
me roubaram o burro, ó mulher?! Que te roubaram o quê?, fez Josefa, muito
attonita. O burro, o Sultão! Vem cá
ver que m’o roubaram! E como ao tempo acudira já o Manoel, em camisa, descalço,
romperam todos tres na gritaria, defronte do cortelho vazio: á d’el-rei! Á
d'el-rei! Á d'el-rei! Até que o regedor, que era compadre, intervindo
estremunhado, poz na peugada do burro, mais dos larapios, os cabos que
compareceram.
Mas em vão! Um a um
foram regressando, pelo dia adeante, e desfechando ao peito abatido do Thomé a
negra e vazia palavra: Nada!...
Dois annos depois. Tarde
d’agosto. Ao longe, fechando o horizonte que a eira dominava, as arestas dos
montes quebravam-se n’uma sombra egual, e embaciavam ainda o poente as suaves,
brandas pulverisações doiradas da ultima luz do sol. Riscos vermelhos de
nuvens, como grandes vergas de ferro levadas ao rubro, destacavam immoveis n’um
fundo verde-mar, esvaecido e meigo, raiado de listrões de uma coloração leve de
laranja. Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve, cortavam aqui e além,
alegremente, a monotonia profunda do azul. N’um deslado, sob os castanheiros proximos, surgiam os telhados
da aldeia, a torre branca da igreja, as paredes caiadas da escola. A vasta eira
commum, levemente accidentada, apresentava áquella hora o aspecto tranquillo e
de paz de uma grande officina em repouso. Poucas mêdas, iam no fim as colheitas: mais uma semana, duas quando muito,
e estaria tudo recolhido. Já sobre a palha das parvas ou ao sopé das mêdas
altas, entre os utensilios da trilha e a creançada estridula que brincava, os
da lavoura descançavam, vermelhos da soalheira intensa de todo o dia, alguns
deitados, em mangas de camisa, peito nú, arregaçados os braços musculosos, n’uma
prostração regalada de matilha que alfim tem a sua hora de socego, após um dia
de caçada. Parecem prostrados da fadiga os proprios malhos, os trilhos, as pás,
os baleios que levaram todo o santo
dia varrendo o chão em volta das parvas.
E aqui e ali, dando uma sensação agradavel de fartura, perfilam-se os altos
saccos no meio das rasas, extravasando de grão.
Além, gente em mangas de
camisa, ao redor de um grande montão de palha triturada, vae limpando, visto que sopra um ventinho. E sente-se sobre as pás a
chuva do grão, ao mesmo tempo que a palha, voando, faz monte da outra banda, e
os baleios, em mãos de mulheres, não
cessam de arrebanhar o grão, altissimas angarellas,
vae-se enchendo de palha; emquanto outros, atulhados de saccos, em rimas entre
as cancellas mais baixas, estridulamente chiando abalam para as tulhas, levados
pelos bois gigantes. Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da
palha, levas de bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes,
caudas oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pêllo. E lá vão encosta
abaixo, roçando pelos troncos asperos dos castanheiros a enorme corpolencia,
fartar o largo bandulho á serena agua das ribeiras, sorvendo vagarosamente,
impando a cada sorvo, pesadamente, monotonamente, parece que insaciaveis no
meio da agua em que se atolam, submissa...
Ao fundo da eira, rente
aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres cantava alegremente, em côro.
Acabara de ensacar-se o ultimo grão da farta colheita do Thomé da Eira. Colheita
rica, sim senhor!, vinham dizer-lhe os visinhos. A primeira da aldeia! Qual?,
isso sim!, vão vocês vêr a tulha. Muita palha, é que vocês hão de dizer, muita
palha e pouco grão... E muito azafamado, sem prosapias de maioral nem geitos de
soberba, as mangas arregaçadas pelos cotovelos, O Thomé ia e vinha, dando
ordens, repetindo avisos, distribuindo aqui e além as ultimas tarefas. Ahi vae
um sacco, ó tu! É p’r’as rabeiras.
Que não fique nem um grão, ouviram? É aviar, toca a aviar! Cautela que não
fique por ahi alguma coisa esquecida: essas pás, esses baleios, tudo isso. Margarida!, ó Margarida!, qu’é da tua rasa?
Deixa!, se vae no carro está bem. E era como um doido a metter-se no serviço de
todos, muito expedito, loquaz, alegre, pedindo pelas bentas almas que se não
deixassem agora dormir...» In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e
Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e
Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa,
Livraria de António Pereira, 1894.
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