domingo, 11 de outubro de 2015

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «O calor não a incomoda, parece antes embriagar-se surdamente: a boca entreaberta, seca. Por entre as pálpebras, no movimento mole das pálpebras quase cerradas…»

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«Livro de momentos, de grandes pausas iniciáticas, de silêncios expressivos, cristalinamente fantástico porque dominado pela compreensão introspectiva e por um intimismo sagaz, circula da narração omnipresente até ao campo raso da corrente de consciência e cerca-se ou adorna-se de sucessivas deambulações pelos domínios da auto-interpretação, permitindo que se aperceba da solução de um enigma estranho: o da decifração do absurdo deste carácter poético e onírico, este nada, mulher ou sombra fantasmática de valores humanos que se ocultam em cada gesto, em cada segundo do decurso lentíssimo da vida».

O Exílio
«Os olhos fecham-se-lhe molemente. De maneira difusa vê ainda a sua imagem reflectida no espelho oval pendurado na parede. Um espelho enorme com grandes flores douradas no dourado velho da moldura antiga. Sente as pálpebras moverem-se singularmente devagar e o corpo distender-se: lasso, quebrado, dobrado ao acaso sobre a cama, como se dormisse. Sentia-se como se dormisse já; a própria imagem que via reflectida no espelho era a imagem difusa de uma mulher adormecida. Passa a língua pelos lábios secos e sente-os salgados, parece-lhe ser salgado aquele sabor estranho. Ou a fruto, a vinho? A língua detém-se, espessa, mole, antes de percorrer novamente os lábios. Através da penumbra lenta do quarto, o olhar de quem ali entre será conduzido de chofre até à luz acre, abrasada, que se detém mas que se infiltra apesar de tudo por entre as lâminas metálicas das persianas. Depois a mulher. Preferível será dizer: a imagem da mulher reflectida no espelho, o corpo quebrado sobre a cama, os braços ao acaso, as pernas encobertas pela imagem reflectida do candelabro que sobre a mesa pintada estende os seus braços de bronze. Ou de ferro? Sente o peso dos cabelos repousados nos ombros. O peito suado, a pele húmida: nem toda: a pele das axilas, do pescoço, das virilhas, entre os seios, a pele da parte interna das coxas. O calor não a incomoda, parece antes embriagar-se surdamente: a boca entreaberta, seca. Por entre as pálpebras, no movimento mole das pálpebras quase cerradas, há, porém, o fulgor estranho dos seus olhos. Mas ela sente-se como se dormisse já: uma total e completa lassidão. A própria brandura do seu corpo dá-lhe essa certeza; no entanto distingue ainda no espelho (pendurado tão perto do chão que as grandes rosas douradas da parte inferior da moldura: antiga quase roçam o tampo da mesa baixa, onde, sobre o florão pintado, o candelabro expõe os braços encurvados, sem velas), no entanto distingue ainda no espelho a sua própria imagem. Vê-a esfumada, difusamente, sente difusamente a penumbra abrasada do quarto onde mergulha, lassa, dobrada ao acaso, aberta sobre a cama, numa oferta total e boa, como se sentisse um enorme gozo, como se a tivessem largado assim depois de a terem possuído sem a acordarem, e ela tivesse gozado todavia intensamente e agora, lassa, aberta, gozasse ainda num prazer transbordante mas dormente. Tenta mover as pernas, a cabeça; porém, dorme, dorme imóvel; isso, dorme já, sem memória, sem futuro, sem sonhos nem pesadelos. Uma total ausência, um vácuo. Distendida, amnésica, ausente. Passa a língua nos lábios secos e sente-os salgados, parece-lhe ser salgado aquele sabor estranho. Ou a fruto, a vinho? A língua detém-se espessa, mole, antes de percorrer novamente os lábios. Através da penumbra lenta do quarto, o olhar de quem ali entre será conduzido de chofre até à inconsciência daquela mulher. Até ao sono sequioso daquela mulher, aberta, quebrada, o corpo ao acaso sobre a cama, a imagem fixada no espelho como uma fotografia. Ociosa. Depois, será a luz acre da tarde que se detém, que se infiltra contudo lambendo a atmosfera suada até ela, até onde ela dorme, onde se sente dormir já, fixando-se, fixando o quarto através do espelho. Um espelho enorme, oval, com grandes rosas douradas no dourado velho da moldura antiga. E ali adormece pouco a pouco». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia PEAmérica/JDACT