segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O Casamento do Ano. Laura Guhrke. «Na lista de prioridades, as questões de interesse patrimonial deveriam sobrepor-se às restantes. O jovem cavalo parecia não concordar com estas ideias. Galahad agitava-se e trotava impacientemente»

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«(…) Não como o Egipto, onde as temperaturas nesta altura do ano conseguiam atingir valores abrasadores. Era bom estar em casa, e este era um sentimento inesperado. Mas apesar de estar a gostar, a paisagem envolvente de montes suaves e sebes que serpenteavam pelas colinas parecia-lhe, de certa forma, surreal. Ele tinha crescido nestes prados; conhecia de cor cada curva do caminho e cada vedação com póneis de Devonshire ou vacas de Jersey. Conseguia identificar todos os odores que pairavam no ar, os pomares de macieiras, as flores campestres, e o omnipresente cheiro a maresia, odores que se misturavam para formar a inconfundível fragrância de Stafford St. Mary. Estava tudo como nas memórias dele, como sempre fora. E ainda assim, tudo lhe parecia quase estranho, pelos vistos a verdade era que após todos estes meses o Egipto lhe parecia mais familiar que a Inglaterra. Saindo da estrada principal, a memória de tempos idos guiou-o através da ponte de pedra que unia as margens do rio Stafford e fê-lo seguir pela estrada que levava a Sunderland Park, Danbury Downs, e as charnecas e turfeiras para lá destas propriedades vizinhas.
A casa de Sunderland estava arrendada, de, momento, mas a abastada família americana que estava a usufruir dela encontrava-se a visitar o Lake District, a Norte, o que lhe possibilitava usufruir dela durante o resto do verão. Não que tencionasse prolongar a sua estada. Esperava conseguir concluir os seus negócios e seguir caminho dentro de uma semana ou duas. Uma vez que queria cá passar o mínimo tempo possível, ocorreu-lhe que deveria, pelo menos, dar uma vista de olhos rápida à herdade, em vez de andar a perder tempo passeando-se pela charneca. Afinal de contas, e apesar de pouco ligar ao título, agora era duque, e fazia parte das suas obrigações cuidar, das terras que tinha herdado. Na lista de prioridades, as questões de interesse patrimonial deveriam sobrepor-se às restantes. O jovem cavalo parecia não concordar com estas ideias. Galahad agitava-se e trotava impacientemente, abanando a cabeça como que a descartar prioridades tão aborrecidas quanto aquelas, e Will riu-se. Não estás muito virado para passeatas tranquilas no parque, tu, heim?, perguntou, debruçando-se sobre o pescoço do animal, e dando-lhe uma palmadinha afável. Ambos preferíamos uma volta mais desafiante pela charneca, atrevo-me a dizer.
Ao vocalizar esta ideia, Will apercebeu-se de quanto realmente lhe apetecia fazer isso. Cavalgar pela charneca à carga, como costumava fazer com Paul Danbury, quando eram garotos e vinham a casa nas férias do verão. Pouca gente sabia que ele estava por cá, e eram menos ainda aqueles que se importavam. Ambos os seus pais tinham morrido, e exceptuando uma irmã casada na Índia e alguns primos dispersos pela Inglaterra, não lhe restava família. Não havia ninguém à espera em Sunderland Park para o abraçar e lhe dar as boas-vindas. Nem Beatrix o esperava, já. Não vás tão depressa, Will. Espera por mim. A voz dela ecoou-lhe na cabeça, trazendo à superfície memórias de há quase duas décadas, de uma menina de sete anos, num vestido cor-de-rosa, aos folhos, com caracóis loiro-dourados e grandes olhos castanhos, que corria sobre umas perninhas rechonchudas atrás dele, até aos estábulos, tentando segui-lo. Espera por mim, Will. Também quero ir...
Não se recordava com certeza da resposta que lhe tinha dado, nesse dia, mas, pensando nisso, acreditava que devia ter sido condescendente e desagradável. Afinal, qual seria o rapaz de onze anos que quereria a companhia entediante da priminha de um amigo? E como as circunstâncias mudavam, ao longo de uma vida. Treze anos mais tarde os papéis tinham-se invertido, e fora a vez de ele implorar àquela rapariga de cabelos dourados que viesse partilhar a aventura da vida dele. Tinha pedido, aliciado, implorado. E bem podia ter poupado o fôlego. Will sentiu a raiva subir-lhe no sangue, quente e súbita, como tantas vezes acontecia. Mas, tal como fazia sempre, Will engoliu a emoção forte e optou por pensar de forma racional. Ele e Beathix tinham feito as suas escolhas há seis anos atrás, e agora ambos tinham de viver com as consequências dessas escolhas. Entre estes pensamentos, um som estranho começou a abrir caminho até à consciência de Will. Era um rugido grave, que se sobrepunha ao tamborilar rítmico dos cascos de Galahad, e que não se integrava na bucólica paisagem campestre. Retesando as rédeas, Will abrandou o passo do cavalo, escutando com atenção, numa tentativa de identificar o som pouco familiar. Parecia o zumbido de um zangão, mas mais abrasivo, e muito, muito mais alto. E parecia estar a aumentar de volume a cada instante que passava». In Laura Lee Guhrke, O Casamento do Ano, tradução de Luísa Fechner, Publicações dom Quixote, 2011, ISBN 978-972-204-783-8.

Cortesia de PdQuixote/JDACT